O título da sua última antologia de poemas, “Opened Ground” [Chão aberto] tem a ver com toda a sua poesia, com a busca de raízes. Ao longo destes 35 anos representados no livro (1966-96) como evoluiu a sua relação com o seu chão, a Irlanda do Norte? Ou, de outra forma, o que é que o tempo lhe ensinou? Que tudo é mais simples e singular, que tudo se relaciona. Comecei com uma forte consciência de mim enquanto resistente no que era então a Irlanda do Norte: pertencendo a uma minoria católica, com uma fidelidade à cultura gaélica, irlandesa. Sentia uma grande solidariedade política com essa minoria, pelas discriminações que existiam. A minha identidade era baseada nessa resistência política e num cordão com o passado irlandês. O inglês é a minha língua materna, mas estudei gaélico e tinha essa noção de ter sido desapossado da língua irlandesa devido a séculos de língua inglesa. Na universidade aprendo a história da língua inglesa. E gradualmente compreendo que a nossa existência como criaturas, com impulsos, instinto, está baseada no inglês. Ou seja, havia uma Irlanda escondida em mim, mas descubro através da educação, do vocabulário que também havia uma Inglaterra escondida em mim - talvez não tão escondida… -, como há uma Grécia, como, através do catolicismo há um certo Mediterrâneo… Não traímos o que está lá, expandimos, renovamos, reapossamo-nos, de outra forma, do que está lá. Robert Frost disse que o objectivo da educação era mudar o plano do olhar. O nosso plano do olhar, se temos sorte, continua a mudar, a re-situar-se. No discurso de aceitação do Nobel usei essa ideia da ondulação que vem de um centro… atiramos uma pedrinha numa piscina e algo começa, as ondas vão avançando, avançando… à medida que envelhecemos, a nossa experiência alarga-se, mas ainda estamos ligados a essa coisa no centro. Politicamente, como é que avalia agora a situação na Irlanda do Norte? Há uma mudança enorme. Se pegarmos nos anos 40/50, quando eu cresci, tínhamos um governo apenas unionista, havia discriminação, uma força policial armada. Nos anos 60 houve algumas mudanças, o acesso da minoria à educação, movimentos de direitos civis. Depois, os levantamentos dos anos 60/70 quando a estrutura de governo foi desmantelada e começou a violência, o IRA, a velha luta pela independência.
E os anos 80 começam com greves de fome e a senhora Thatcher dizendo: “Isto não é uma situação política, são criminosos.” Acabamos os anos 90 com um acordo alargado, concedendo que a minoria tem uma identidade, tem o direito de ser representada politicamente. Nada está completamente consolidado, mas ultrapassou-se a intransigência dos britânicos e dos unionistas. O que era necessário era o respeito pela identidade, pela legitimidade da cultura irlandesa. Ainda virá a ser confuso, complicado mas as alterações são enormes. E continua a existir a “cumplicidade das tribos”, de que fala num dos seus poemas mais célebres, “Casualty”, sobre um amigo católico morto pelo IRA num bar de unionistas? Persiste, não seria humano se não persistisse. Mas as instituições estão lá para alargar, abrir essas fronteiras. Está optimista? Sim. Pensemos na segregação nos estados do sul dos EUA nos anos 50. Mudaram-se as coisas através de legislação. Não significa que os brancos supremacionistas já gostem dos negros, mas são obrigados a deixar que se sentem na parte da frente do autocarro. E isso é uma diferença enorme: quando as instituições, as leis garantem paridade, levará um século, mas as consciências mudarão. O seu sentido de justiça é ressuscitado. Na introdução de “Beowulf” fala dessa estranheza que se pode ter por um irlandês nacionalista, católico traduzir o poema da tradição anglo-saxónica, e conclui dizendo que é como se essa antítese, essa barreira tivesse colapsado. O que é que lhe interessou nesse trabalho, além do imenso desafio literário? O primeiro dos motivos foi linguístico, artístico. Não o poderia ter feito se não sentisse que a melodia do meu discurso poético tinha alguma coisa a ver com “Beowulf”: com o meu diapasão, eu podia apanhar a “nota” de “Beowulf”. Mas, no fim, não pude impedir-me de pensar no que significava ter traduzido esta obra. Como nacionalista católico, etc. era esperado de mim que traduzisse da língua irlandesa, que afirmasse a profunda tradição irlandesa - e fi-lo em 1983, publicando um livro, “Sweeney Astray” [tradução de uma obra medieval irlandesa], que queria dizer: ‘Ei, há uma longa tradição aqui!’ Era uma declaração política, também.
Ao concluir “Beowulf”, pensei que era pelo menos malicioso, irónico, ir às fundações da tradição anglo-saxónica e apropriá-la [risos]. Ou, noutro sentido, alienar a distinção, tentar dizer que as políticas de identidade são um pouco disparatadas… Porque, segundo a lógica dessas políticas, nós, os católicos da Irlanda do Norte traduzimos a tradição irlandesa, vocês, protestantes, unionistas traduzem os anglo-saxões… Isto reduz as possibilidades humanas, não é a forma como somos, não é verdadeiro em relação à vida, à nossa capacidade de absorver tudo. Cada criatura tem uma estação receptora que pode receber quase tudo, desde que não lhe imponham barreiras. A minha, enquanto criatura da fonética, está muito alerta a essa rocha anglo-saxã, que me deu, dá muito prazer. Levei três anos a completar essa tradução, comecei nos anos 80, interrompi, recomecei em Março de 1995 e acabei-a no fim de 1998. Pelo meio, o Nobel afastou-me durante um ano. Mas ter “Beowulf” como um objectivo, um trabalho ajudou-me muito depois do Nobel, recentrou-me. Foi um lastro.
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