quinta-feira, 28 de maio de 2009

manfred geier "Sobre o que riem as pessoas inteligentes"

Quem não a imagina mentalmente, a seguinte cena: envolto nas chamas da biblioteca ardente do mosteiro, o cego Jorge de Burgos está no centro dos aposentos secretos e incinera uma folha após outra de um escrito proibido, para que ele não caia nas mãos de gerações subseqüentes. Ele arrancou-as do livro, em torno do qual o professor de Semiótica Umberto Eco estruturou o seu romance policial O nome da rosa como um palimpsesto da história da filosofia e da literatura ocidentais. Trata-se do famoso e inteiramente desaparecido segundo livro da Poética (Peri poietikes) de Aristóteles, no qual o filósofo expôs os princípios, segundo os quais os poetas deveriam construir uma boa comédia. O venerando Jorge – por trás do qual podemos reconhecer sem dificuldade o bibliômano Jorge Luis Borges – falara do riso como uma careta, que desfiguraria o rosto humano na momice do símio. Por trás das muralhas do convento ocorrem assassinatos, pois o riso alegadamente é coisa do diabo. No seu último livro, Manfred Geier, filósofo e filólogo de Hamburgo nascido em 1943, recentemente notabilizado como autor de uma fulminante biografia de Immanuel Kant (Kants Welt – O mundo de Kant), aproxima-se dessa reação mímica do ponto de vista da filosofia e apresenta no seu livro tão erudito quanto entretenedor Do que riem as pessoas inteligentes uma “pequena história do humor filosófico“, conforme afirma o subtítulo. Por que o ser humano ri, genericamente, e qual é o significado do chiste e do humor para a nossa vida cotidiana? Partindo dessas perguntas, Geier examina detidamente a história da filosofia e a história das idéias do Ocidente e mostra, com base em exemplos escolhidos, sobre o que os grande filósofos riram e o que descobriram sobre as causas e o fundo desse riso. Sancho Pansa, o escudeiro aparentemente estúpido de Dom Quixote, sabia exatamente que sobretudo o riso distingue o homem do animal. Assim ele admoesta seu amo, que às vezes prova ser muito triste: “Meu amo, a tristeza não foi feita para os animais, mas para os homens, mas quando os homens se abandonam a ela além de toda a medida, tornam-se animais.“ Quase parece que Sancho Pansa conheceu o livro de Aristóteles sobre o riso e a comédia, pois a sua sabedoria popular remonta à descoberta do filósofo grego. Não obstante, conforme Geier mostra nas suas reflexões que iniciam com a Antiguidade grega, os gregos criticavam o riso ruidoso em pessoas que já tinham ultrapassado a juventude, reconhecendo nele a prova de uma educação deficiente e de uma vulgaridade desprezível. Conforme Geier mostra na sua breve recapitulação dos diálogos pertinentes, o riso foi expulsado da filosofia por Platão, talvez o mestre-pensador mais proeminente da filosofia ocidental. Segundo Geier, pensadores como Demócrito de Abdera, de cujos escritos quase não chegou nada a nós e cujas opiniões estão conservadas apenas em forma aguada, em anedotas, praticamente não tiveram vez nem voz na sombra extensa lançada pela obra platônica. Geier manifesta sua simpatia justamente a esse “filósofo ridente“, considerado louco pelos seus compatriotas, embora fosse um naturalista importante. Rastreando cuidadosamente os vestígios, Geier acompanha os confrontos das posições filosóficas, nos quais vislumbramos de um lado uma cultura da vida baseada na uniformidade, na prudência, na beleza da alma e na graça, enquanto por outro lado constatamos a conformação de uma teimosia que ri de forma espirituosa sobre as tolices do gênero humano. Geier mostra com muito gosto pelo detalhe que significado os filósofos deram ao humor no decorrer da história, e procura mostrar sobre o que poetas e pensadores como Rabelais, Kant ou Schopenhauer riram na sua respectiva época. É motivo de alegria ver que justamente a tradição alemã, não propriamente famosa pelo seu senso de humor, é apresentada aqui em retratos sensíveis, repassados de sutil comicidade, de Christoph Martin Wieland, Kant, Schopenhauer ou Freud, até os jogos de palavras de um humorista como Karl Valentin. Voltaire ponderou certa feita que uma pessoa que buscasse as razões do riso não seria feliz. É difícil explicar uma piada. O sal desaparece no momento, no qual queremos analisá-lo com agudeza teórica. Assim Geier convence menos com a tentativa de distinguir três fundamentos do humor mediante recurso às teorias da superioridade, da incongruência e da descontração: o que compreendemos do esprit de Karl Valentin, quando sabemos que ele „dissolve o teor indefinido dos advérbios“? Muito pelo contrário, o mérito desse livro, que entretém de modo inteligente, reside na sua oferta de um amplo leque de anedotas e aperçus da história da filosofia, na qual o riso proverbial da escrava trácia diante da queda do filósofo de Mileto no poço mostra de forma translúcida a mentira fundacional da filosofia européia: “que o preço do amor à sabedoria é necessariamente o distanciamento do mundo vivido“. Para além da sisudez moral e do rigor gnoseológico, as veredas secundárias da filosofia ocidental, pelas quais Geier conduz o leitor, revelam vários novos aspectos da constituição da realidade. É sabido que os desvios aumentam o nosso conhecimento de um lugar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário