quarta-feira, 29 de abril de 2009

Willard Van Orman Quine

O que é esta coisa chamada de filosofia? Professor Adler acha que ela tem mudado profundamente na última metade do século. Já nada mais diz ao homem comum ou enfrenta problemas de amplo interesse das pessoas. O que é ela? Há alguma coisa reconhecível, a filosofia, que tem passado por estas mudanças? Ou a mera palavra “filosofia” tem sido distorcida consecutivamente, aplicando-se antigamente a uma coisa e agora a outra? Claramente Adler não está preocupado com nada tão superficial como a semântica migratória de uma palavra de cinco sílabas, porém uma palavra ressonante. Na verdade, ele diria que a filosofia é de qualquer maneira a mesma disciplina, apesar das lamentadas mudanças. Para mostrar isto ele podia citar a continuidade da sua história com mudanças. Mas a continuidade é também uma característica da semântica migratória de um pentassílabo. Podemos fazer melhor avaliando o panorama em transformação se olharmos mais propriamente para os esforços e actividades vigentes, velhos e novos, exotéricos e esotéricos, graves e frívolos, e deixarmos a palavra “filosofia” cair onde puder.Aristóteles foi, entre outras coisas, um físico pioneiro e biólogo. Platão foi, entre outras coisas, de certo modo um físico, se a cosmologia é uma parte teórica da física. Descartes e Leibniz foram em parte físicos. Naqueles tempos, a biologia e a física eram chamadas de filosofia natural. Elas foram chamadas de filosofia natural até ao século dezanove. Platão, Descartes e Leibniz eram também matemáticos, e Locke, Berkeley, Hume, e Kant eram em larga medida psicólogos. Todas estas luminárias e outras que nós veneramos como grandes filósofos eram cientistas na busca de uma concepção organizada da realidade. A sua busca foi, de facto, para além das ciências restritas como nós agora as definimos; havia também conceitos amplos e mais básicos para desemaranhar e clarificar. Mas as dificuldades com estes conceitos e a procura por um sistema numa grande escala eram ainda integrais a toda a busca científica. Os mais gerais e especulativos alcances de uma teoria são aquilo que olhamos nos nossos dias como distintamente filosóficos. Acresce que hoje, o que é perseguido sob o nome de filosofia tem também estas mesmas preocupações, quando é o que considero a sua melhor técnica. Até ao século dezanove, todo o
conhecimento científico disponível de alguma importância podia ser acompanhado por uma singela mente de primeira categoria. Esta situação confortável acabou à medida que a ciência se expandiu e aprofundou. Apareceram distinções subtis e proliferou o jargão técnico, muito do qual é genuinamente necessário. Os problemas em física, microbiologia e matemática dividiram-se em problemas subordinados que qualquer um, retirado do contexto, surge ao leigo como inútil ou ininteligível; apenas o especialista vê como ele figura no quadro completo. Actualmente a filosofia, quando é contínua com a ciência, progrediu também. Aí, tal como na ciência, o progresso expôs distinções relevantes e conexões que passaram despercebidas em tempos passados. Aí, tal como noutros lados, problemas e proposições foram analisados em constituintes que vistos isolados, devem parecer desinteressantes ou pior.A lógica formal completou o seu renascimento e tornou-se numa ciência séria justamente há cem anos atrás pelas mãos de Gottlob Frege. Um traço saliente da filosofia científica nos anos subsequentes tem sido o uso, crescente, da poderosa nova lógica. Isto tem resultado por um aprofundamento dos conhecimentos e por um refinar de problemas e soluções. Também tem resultado pela intrusão de termos técnicos e símbolos que, a par de servirem os investigadores, tendeu a afastar os leitores leigos.Outro traço saliente da filosofia científica, neste período, tem sido uma preocupação crescente com a natureza da linguagem. Em círculos responsáveis isto tem sido uma retirada sobre questões mais sérias. Mas é uma exteriorização de escrúpulos críticos que remonta a séculos atrás até aos empiristas britânicos clássicos Locke, Berkeley, e Hume, e são mais claros em Bentham. Tem sido crescentemente reconhecido nos últimos 60 anos, que as nossas noções introspectivas tradicionais – as nossas noções de significado, ideia, conceito, essência, todas não disciplinadas e não definidas – proporcionam um fundamento extremamente débil e desajeitado para uma teoria do mundo. Ganha-se controlo por uma focagem nas palavras, como elas são aprendidas e usadas, e como elas estão relacionadas com as coisas. A questão de uma linguagem privada, mencionada por Adler como frívola, é um exemplo para o caso em questão. Filosoficamente tornou-se significante quando reconhecemos que uma teoria legítima do significado deve ser uma teoria acerca do uso da linguagem, e que a linguagem é uma arte social, socialmente inculcada. A importância da matéria foi enfatizada por Wittgenstein e previamente por Dewey, mas é desperdiçada por alguém que se depara com a questão fora do contexto.Seguramente, muita literatura produzida sob o título de filosofia linguística é filosoficamente inconsequente. Algumas peças são divertidas ou medianamente interessantes como estudos de linguagem, mas têm sido publicadas em jornais filosóficos apenas por associação superficial. Alguns, mais filosóficos no propósito, são simplesmente incompetentes; o controlo da qualidade é uma mancha na imprensa filosófica florescente.
A filosofia tem sofrido há muito tempo, ao contrário das ciências duras, de um irresoluto consenso em questões de competência profissional. Os estudantes do céu são separáveis em astrónomos e astrólogos assim como os pequenos ruminantes domésticos são separáveis em carneiros e cabras, mas a separação dos filósofos em sábios e excêntricos parece ser mais sensível a sistemas de referência. Isto é talvez como deve ser, em virtude do carácter não regimentado e especulativo da disciplina.Muito do que foi recôndito na física moderna foi aberto pela divulgação. Estou agradecido por isto, pois tenho um gosto por física mas não posso adquiri-la em bruto. Um bom filósofo que é um expositor competente podia fazer o mesmo com a filosofia técnica corrente. Seria preciso talento, porque nem tudo o que é filosoficamente importante precisa de ser de interesse do leigo mesmo quando claramente explicado e posto no lugar. Pensemos na química orgânica; reconheço a sua importância, mas não estou curioso em relação a ela, nem vejo por que o leigo deva apreciar muito daquilo que me interessa em filosofia. Se, em vez de ter sido chamado para aparecer na série da televisão britânica “Men of Ideas”, tivesse sido consultado sobre a sua viabilidade, devia ter expressado dúvida.
O que tenho estado a discutir sob o título de filosofia é aquilo a que eu chamo de filosofia científica, velha e nova, pois tem sido a disciplina cuja moderna tendência Adler critica. Mas deste título vago não excluo estudos filosóficos de valores morais e estéticos. Alguns destes estudos, em moldes analíticos, podem ser científicos no espírito. Eles estão aptos, porém, para oferecer pouco no sentido da inspiração ou da consolação. O estudante que se forma em filosofia primariamente por conforto espiritual está mal orientado e, provavelmente, não é um muito bom estudante de qualquer modo, dado que a curiosidade intelectual não é o que o move.A escrita inspirativa e edificante é admirável, mas o lugar para isso é a novela, o poema, o sermão, ou o ensaio literário. Os filósofos, no sentido profissional, não têm qualquer peculiar aptidão para isso. Nem têm qualquer peculiar aptidão para ajudar a sociedade para um equilíbrio, embora devamos todos fazer o que pudermos. O que pode satisfazer estas necessidades perpetuamente urgentes é sabedoria: sofia sim, filosofia não necessariamente.Nota: Esta peça foi escrita para o Newsday por pedido de resposta a uma peça de Mortimer Adler. As duas eram para aparecer juntas sob o título acima. Aquando da publicação, em 18 de Novembro, 1979, o que apareceu sob o meu nome verificou-se ter sido rescrito para agradar à vontade do editor. Este é o meu texto não corrompido.

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