quinta-feira, 28 de maio de 2009

Katja Lange-Müller

O meio social é o do estrato mais baixo de Berlim Ocidental pouco antes e pouco depois da virada de 1989. Os personagens: um drogadito doente de Aids e ex-presidiário em liberdade condicional, uma desempregada de seus 40 anos que se refugiou da parte Leste da cidade para o Ocidente e sobrevive de bico, vendendo flores. Será que, com estes ingredientes, é possível escrever uma história de amor comovente? O romance Ovelhas más, de Katja Lange-Müller, que se passa na margem inferior da sociedade e fala da vida no precipício financeiro e emocional, prova que sim. Mais ainda: tanto é possível, que este romance realista e, ao mesmo tempo, emocionante, catapultou sua autora para a lista dos nomeados para o Prêmio do Livro Alemão (Deutscher Buchpreis) no final de 2007. No início do novo milênio – portanto, quase 20 anos depois desses acontecimentos, Soja faz um retrospecto de seus quatro anos conjuntos com Harry, o ex-presidiário viciado em drogas que ela conheceu casualmente na rua. A partir do primeiro instante, ele se torna o conteúdo de sua vida, e isso com uma incondicionalidade assustadora e impressionante. Firmemente determinada a ajudar Harry em suas tentativas de se ressocializar, ela organiza um grupo de acompanhantes para ele e o sustenta financeiramente. Tudo isso na esperança de conseguir evitar uma recaída do namorado, voltando a depender das drogas ou a agir como traficante. É assim que Soja surge no livro como pessoa altruísta, que quer ajudar, tentando organizar a vida do outsider para lhe dar uma nova estabilidade. Por outro lado, essa relação também estabiliza a ela própria. Pois ele é o primeiro (e, como depois saberemos, também o único) homem, com quem ela experimenta o amor não como “doença” que ela “temia como o diabo”, e sim como “falta de pretensão libertadora” e “felicidade inebriantemente pouco dramática”. Finalmente, ela tem a sensação de estar sendo útil, e assim acaba sendo se tornando tão dependente de Harry quanto este de sua droga. Na verdade, é a história de dois viciados que Katja Lange-Müller conta de forma impiedosamente aberta e, apesar disso, com imensa sutileza, sempre buscando as palavras certas para os acontecimentos tão difíceis de compreender. Um deles é a grande reviravolta histórica marcada pela queda do Muro de Berlim. Não é só o meio social deprimente no qual se passa essa história de amor e paixão que é pouco comum para literatura alemã contemporânea, mas também a forma de contar esse amour fou na segunda pessoa do singular. Soja se dirige diretamente ao seu amado que, apesar de todos os seus cuidados, acabou mesmo tendo uma recaída e morreu de Aids em 1990 em um hospital. Esse diálogo interior com o – em vários aspectos – infiel Harry (assim como as conversas entre ambos costumavam ser uma troca unilateral), ainda é movido pela raiva e pelo espanto com a traição em relação a ela e o seu amor abnegado. Ao mesmo tempo, trata-se de uma grande declaração de amor póstuma, pois desde que os dois se viram pela primeira vez, Harry “nunca mais saiu da sua vida”. O que faz Soja se confrontar com o amado ausente são as anotações esporádicas e marcadas pela frieza e pelo cinismo que ela lê pela primeira vez décadas depois de sua morte. Como tem dificuldades em compreender que ali não haja uma única menção a ela, Soja procura entender, a partir de alguns trechos citados em seu grande monólogo de despedida, num único movimento de busca, o que existiu entre os dois – ou o que não existiu, o que tão evidentemente deveria ter sido, mas que ela não conseguiu ou não quis enxergar. “Eu não quis ver aquilo que, como logo ficou evidente, eu não consegui ver, no sentido de não conseguir enxergar”. Ao evidenciar suas projeções e seus desejos, Soja acaba girando cada vez mais em torno da pergunta irrespondível: “Por que estou tão ausente, como se nós nunca tivéssemos nos conhecido?” O que é decisivo para o monólogo de Soja é ter que prestar contas sobre o que a atraiu tanto naquele homem tão irresponsável quanto digno de ser amado e que ainda a atrai, a ponto de determinar o seu pensamento e as suas emoções. Surpreendentemente, este monólogo que, aos poucos, vai-se tornando um réquiem para o amante perdido, tem, para ela, um efeito libertador. “Eu estava desistindo de mim mesma quando li o teu caderno e descobri que podia conversar contigo, escrever-te”. Essa abordagem pessoal, o diálogo imaginário, confere ao romance uma intensidade e uma densidade que toca o leitor mais do que qualquer outra forma narrativa. Outro aspecto da qualidade literária impressionante é o fato de que a maneira de Soja chamar seu namorado postumamente para se explicar ou seus questionamentos interiores jamais descambam em cafonice ou em uma prosa de perplexidade. O motivo para isso é o olhar nada sentimental da narradora sobre si mesma. Ela descreve suas próprias vulnerabilidades e nostalgias de forma tão direta, tão pouco sentimental, como também narra a experiência do amor em imagens sensíveis e com uma seriedade existencial e uma paixão ainda viva pelo que chama de “decisivo” e que ninguém mais lhe pode roubar. Dessa forma, o diálogo de Soja com o Harry ausente acaba sendo uma ode ao amor e ao poder da memória. “Este filme [algo esmaecido e arranhado] se passa sempre quando penso em ti, em nós”. Nessas imagens indestrutíveis, Harry continua vivo dentro dela. E assim, apesar de toda a tristeza e dor, o romance consegue chegar a um fim com esperança. „Nós nos temos um ao outro e temos tempo, nada além disso, mas muito, embora pareça que ele (o tempo) não existe mais”.

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