sexta-feira, 1 de maio de 2009

Jean-luc Nancy

Jean-luc Nancy
http://br.youtube.com/watch?v=e0q_DG7bgoY
A filosofia francesa sempre teve o mérito da duplicidade. Marcada desde os idos de Montaigne por uma escrita híbrida, ela parece ter se especializado neste movimento de ignorar fronteiras e sobrepor discursos que normalmente não deveriam andar juntos. Onde outras tradições intelectuais vêem um crime inafiançável de imperialismo filosófico, o Hexágono vê uma peça maior de sua ideologia nacional.Derrida escreve filosofia como quem escreve romances literários. Foucault escrevia filosofia como quem escreve ensaios de história. Deleuze aproximou Kant do masoquismo, Péguy de Kierkegaard, Proust dos signos e Francis Bacon de si mesmo. Lacan, seguindo o princípio matemático das propriedades comutativas, escrevia psicanálise como quem escreve filosofia.É verdade que o cultivo da duplicidade do ensaio filosófico está longe de ser um monopólio hexagonal. Adorno, só para ficar do outro lado do Ruhr, passou a maior parte de sua vida fazendo filosofia nas entrelinhas de críticas musicais e encontrando dialética lá onde os outros só encontravam contraponto dodecafônico. Stanley Cavell, só para ficar do outro lado do Atlântico, viu filosofia nas telas de cinema dos anos gloriosos de Hollywood. Mas Adorno e Cavell estão muito mais próximos da exceção que da regra no interior de suas tradições intelectuais respectivas.Nesse sentido, dois pequenos lançamentos recentes nos lembram que a disposição das cartas não mudou muito no cenário francês. Trata-se de L'Inconscient Esthétique (“O Inconsciente Estético”, 14 euros, Galilée, 77 págs.), de Jacques Rancière, e L’ "il y a" du Rapport Sexuel ("A Existência da Relação Sexual" 12,20 euros, Galilée, 53 págs.), de Jean Luc-Nancy.
São livros que, cada um à sua maneira, forçam a fronteira de uma das interfaces mais instáveis da filosofia, ou seja, aquela que a separa da psicanálise. Eles lembram que há uma arte de fazer filosofia pelas bordas, tocando em motivos cuja dignidade filosófica está sempre prestes a ser contestada por outras áreas do saber.Rancière e Nancy são dois filósofos vindo de tradições totalmente distintas. O primeiro apareceu em cena na explosão de Maio de 68 como um dos discípulos de primeiro escalão de Althusser, com quem colaborou na redação de Lire le Capital.Hoje, depois de alguns anos fazendo a auto-crítica do estruturalismo, ele compartilha uma certa nebulosa pós-68, principalmente com Alain Badiou e Etienne Balibar. Dividindo seu tempo entre reflexões sobre política e estética, Rancière dedica-se pela primeira vez ao problema do estatuto das análises de obras de artes no texto freudiano.Jean-Luc Nancy vem de uma constelação até certo ponto antagônica. Marcado pela fenomenologia heideggeriana, por um certo hegelianismo e pelos motivos da crítica literária de Maurice Blanchot, Nancy está próximo de filósofos como Derrida e Philippe Lacoue-Labarthe, com que dividiu mais de uma autoria.Esta não é a primeira vez que suas reflexões cruzam a psicanálise. Nos anos 70, ele colocava em circulação O Título da Letra, com uma análise detalhada de um artigo de Lacan no melhor estilo do comentário universitário de texto.
L'Inconscient Esthétique é um texto mais ambicioso do que aparenta. Sua idéia central é de que a teoria psicanalítica do inconsciente só foi possível porque um certo regime de pensamento estético já tinha feito o trabalho mais pesado de instaurar o não-saber no coração da representação.Se os textos do pai da psicanálise são permeados de análises de obras de arte é porque Freud depende de uma certa reflexão estética historicamente determinada que o permite ver nestas obras de arte uma noção de inconsciente como pensamento daquilo que é opaco ao pensamento.Vejamos, por exemplo, aquela que é a peça central dos empréstimos psicanalíticos à arte: Édipo-rei, de Sófocles. A originalidade de Rancière consiste em lembrar como Édipo-rei foi, durante muito tempo, considerada uma peça defeituosa e inverossímel. Mal teatro, dirão Corneille e Voltaire. Aos olhos do teatro clássico francês, faltava à obra uma ordem de razões articuladas claramente em um sistema representativo e, principalmente, a figura mesma de Édipo não era sustentável. Sua fúria de querer tudo saber, ao mesmo tempo em que era incapaz de escutar a palavra reveladora de Tirésias; seu destino preso entre logos e pathos: eis o que a estética das luzes não podia admitir.Foi necessário o advento da revolução estética de Hölderlin, de Hegel e de Nietzsche para mudar a orientação. Pois a partir daí entra em cena o conceito de obra de arte como pensamento do que não se deixa pensar, pensamento da opacidade. Ou seja, nesse momento podemos falar em um inconsciente estético que vai acompanhar a reflexão da arte até nossos dias. Afinal, o que dizer da Teoria Estética de Adorno: tentativa maior de compreender a arte contemporânea como resistência do sensível à sua instrumentalização.O mérito de Rancière consiste pois em reposicionar o debate entre estética e psicanálise, para além da redução psicanalítica do fenômeno artístico à sublimação de conflitos pulsionais. No fundo, ele nos lembra da possibilidade de atualizar este debate apesar de Freud.O "apesar" é justificável neste contexto. As análises freudianas de fenômenos estéticos são uma espécie de retorno à perspectiva clássica de compreensão da arte a partir do desvelamento de uma racionalidade causal que estaria distorcida pelo trabalho do artista. Ou seja, a interpretação freudiana é, no final das contas, uma hermenêutica, uma escavação arqueológica que procura, nas entranhas do texto manifesto, um texto latente que revele a cena edípica e a teoria infantil da sexualidade. Uma clínica do pathos pelo logos.Essa tarefa de definir um pensamento psicanalítico da arte à altura da noção de irredutibilidade de um inconsciente estético e que identifique a potência da arte à resistência do pathos ao logos será feita, mas longe dos divãs. Ela pode ser encontrada hoje em críticos de arte como Hal Foster, Rosalind Krauss e Georges Didi-Huberman.
"Não há relação sexual" é, juntamente com "A mulher não existe", a contribuição lacaniana ao compêndio "Dez slogans inesquecíveis do pensamento francês contemporâneo". A aposta de Jean-Luc Nancy consistiu em criticá-lo "do exterior", ou seja, sem entrar nos pormenores das elaborações psicanalíticas sobre o pensamento do sexual. Nesse sentido, ele nos fornece um bom exemplo do que um filósofo não deve fazer quando aborda temas que já têm uma longa tradição de debate em outras áreas da cultura.Com Nancy, estamos longe das reflexões minuciosas de Foucault sobre, por exemplo, o homossexualismo no mundo greco-romano ou a psicanálise enquanto idéia da sexualidade como lugar de verdade. Estamos igualmente longe de trabalhos como o de Monique David-Ménard sobre o problema do feminino na filosofia prática de Kant.Ao contrário, seu texto consistiu em alinhar algumas considerações ontológicas sobre as noções de unidade e de relação e tentar aplicá-las ao problema da relação sexual. Se Rancière mostrou cuidado ao ultrapassar as fronteiras da filosofia apoiando-se no comentário preciso dos textos que procurava criticar, Nancy preferiu agir como o turista que prefere não aprender a língua do país que o acolhe com medo de não poder dominar a discussão.Sem dúvida, seria interessante criticar um dos grandes slogans da psicanálise contemporânea e Nancy teve, ao menos, o mérito do senso de oportunidade. Ele percebeu como essa maneira lacaniana de pensar a impossibilidade da relação sexual pode nos levar a uma diferenciação entre amor e desejo que cheira a teologia negativa; um pouco como se o psicanalista parisiense estivesse retornado à velha dicotomia cristã entre cupiditas e caritas em circulação desde os tempos de Santo Agostinho.Ele percebeu também que não há como dizer que aquilo que fazemos na cama, no carro, no elevador e no Salão Oval não conta, ou só conta como impasse, sem necessariamente entrarmos em uma estranha ética da resignação. Se o prazer da relação sexual é um gozo falso então só resta ao sujeito aceitar este horizonte fim de linha com seu cortejo de perda irreparável ou procurar o gozo de maneira solitária através de qualquer coisa parecida com uma ascese mística (e não é por acaso que Lacan irá procurar o verdadeiro gozo através de considerações sobre o misticismo de Santa Tereza d'Ávila).Contra tais perspectivas, Nancy lembra que, em um sentido trivial, nenhuma relação existe, já que “relação” não é um terceiro elemento, não é uma substância entre dois pólos estáticos. Ao contrário, ela é abertura reflexiva de um espaço do entre-dois. Mas não tivemos que esperar Lacan para descobrir isto, lembrará Nancy. Hegel já havia dito a mesma coisa há algum tempo. Isso, sem esquecer de sublinhar que a unidade criada pela relação nunca é totalizante, mas é dialética e engloba sua própria negação. Tais considerações permitem a Nancy afirmar que o sexual é sua própria diferença e que, no espaço da intimidade entre corpos, encontramos sempre as condições para uma experiência de alteridade e de diferença que é a própria relação sexual existindo.O problema é que o preço por criticar "do exterior" o problema do gozo sexual é caro. Por mais que a fórmula de Lacan abra espaço a uma série de confusões, ela serve para estabelecer uma diferenciação preciosa. Ela nos lembra como o espaço da relação sexual é colonizado por fetiches, como o corpo do outro sempre aparece como tela de projeção fantasmática. Ou seja, de uma certa forma, Lacan está dizendo que sexo sempre é virtual, pois ele é fundado na acomodação do outro ao cenário dos fantasmas do sujeito. Isso nos lembra que, antes de falarmos de alteridade no espaço da relação sexual, devemos entender como é possível atravessar este regime de apresentação fantasmática.Nesse sentido, a fórmula de Lacan tinha ao menos o mérito de fornecer ao pensamento do sexual o tempo necessário para a problematização daquilo que fazemos na cama, nos carros e nos elevadores. Um tempo que Nancy perde ao apagar a especificidade do pensamento do sexual através de sua redução a um simples ontologia da relação e da unidade. Pois Nancy simplesmente “esqueceu” como o problema da impossibilidade da relação sexual era o resultado de uma longa elaboração sobre o estatuto dos impasses das relações intersubjetivas, da subordinação das relações de objeto à lógica dos objetos parciais, da subordinação da experiência do corpo à imagem fetichizada do corpo, entre outros.Com isso, ele esquece também que a capacidade de ultrapassar as fronteiras da filosofia é inseparável de uma arte de saber escrever como um outro. Escrever no limite que separa a filosofia da não-filosofia. O que está longe de ser o caso deste livro.

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