quinta-feira, 28 de maio de 2009

Ilija Trojanow "O colecionador de mundos"

O tema é tão interessante, que não se poderia desejar outro melhor: a história da vida do oficial britânico Sir Richard Francis Burton, que de fato existiu (1821-1890) e viajou por todos os continentes, conhecia a Índia, a Arábia e a África como a palma de sua mão, foi um dos primeiros europeus a poder visitar, disfarçado, as cidades sagradas de Meca e Medina e vivenciou incontáveis aventuras. Inspirado pela vida e pela obra escrita que Burton deixou, eis que o escritor Ilija Trojanow, nascido em 1965 em Sofia, na Bulgária, agora apresenta um romance volumoso sobre esse Colecionador de mundos – conforme o título do livro. O romance é extremamente bem-sucedido e muito mais do que apenas uma coleção de imagens prenhe de colorido. Talvez Burton tenha encontrado em Trojanow um irmão congenial em espírito, já que o narrador de ascendência búlgara é, ele mesmo, um peregrino do mundo, que em 1971 teve de fugir com sua família para a Alemanha – onde receberam asilo –, depois de passar pela Iugoslávia e pela Itália, e que desde 1972 cresceu no Quênia, estudou Direito e Etnologia em Munique em meados dos anos oitenta, fundou duas editoras em 1989 e 1991, em 1999 se mudou para Bombaim por alguns anos e hoje vive na Cidade do Cabo. Trojanow escreve em alemão, e o faz de maneira tão brilhante que o presente romance foi distinguido com o Prêmio da Feira do Livro de Leipzig, edição 2006. Já em seu primeiro romance, O mundo é grande e a salvação espreita por todos os lados, Trojanow provou ser um narrador vivaz e ágil, que sabe reunir com mão suave uma diversidade de histórias e cenas cintilantes e transformá-las em peça literária arrebatadora. É agradável constatar que em seu Colecionador de mundos Trojanow nem de longe sucumbe à tentativa sedutoramente próxima de recontar poeticamente e da maneira mais colorida possível o romance da vida de Burton, tão repleto de história. Pois quando ainda era um rapaz, Burton estava a caminho, na Pérsia e na Índia, na condição de agente, e viajou pela Somália como comerciante árabe, pela Arábia como médico afegão, foi o primeiro europeu a alcançar o lago Tanganica, atravessou a América do Norte e terminou, em seus anos tardios, traduções comentadas das Mil e uma noites e do Kamasutra. Além disso, o oficial era um verdadeiro gênio lingüístico, que em suas viagem em pouco havia aprendido trinta línguas. Que tema, pois. Mas o que ainda se pode inventar depois de uma história dessas? Trojanow calcula muito bem e isola três episódios da vida de seu herói: os anos no subcontinente indiano, a viagem subseqüente a Meca e por fim a expedição às nascentes do Nilo, na África. A decisão de contar esses episódios a partir de perspectivas que sempre se desviam uma da outra prova ser um truque narrativo dos mais inteligentes. Assim, a primeira parte traz sobretudo as memórias de Naukaram, criado de Burton, enquanto a segunda parte é desdobrada como o relato das viagens do oficial inglês, fazendo com que na terceira parte as narrativas de Burton se cruzem com os relatos orais de seu escravo. Mal o oficial chega à Índia Ocidental Britânica, vindo da Inglaterra, faz uma troca cheia de charme com os indianos: vinho do porto por vocabulário, assim noticia o criado de Burton; e Burton aprende rápido, pede lições de sânscrito a um brâmane e toma conhecimento da diversidade espiritual do país. Trojanow talvez consiga alcançar nesta parte as passagens mais impressionantes de seu romance; é de duvidar que algum dia se tenha entrado em contato com a atmosfera opressiva, superlotada, rica em formas até as fronteiras da dor e barulhenta de Bombaim de modo tão vibrante como quando se lê: “Às vezes a cidade bojuda arrotava. Tudo cheirava como se tivesse sido macerado por sucos gástricos. À beira da estrada, jazia um sono semidigerido, que em pouco se dissolveria. Acredita-se poder tocar as impressões com as mãos, quando Trojanow descreve a zoeira dos mercados, os sussurros dos vendedores e prostitutas, os cheiros das casas e praças em imagens cheias de nuances. A parte central do romance se ocupa sobretudo da obstinação com a qual o inglês perseguiu seus objetivos. Ele se converteu ao Islã, por um lado para mostrar seu respeito à cultura islâmica, mas por outro também para poder visitar as cidades sagradas de Meca e Medina, coisa que era proibida aos incréus na época. Na terceira parte do romance acompanhamos, com os olhos de mais um companheiro de viagem – o escravo Sidi Mubarak Bombay –, a expedição rica em sacrifícios de Burton à África, ele que queria ser o primeiro a alcançar as nascentes do Nilo. A maior força desse romance naturalmente rico em histórias paralelas reside, contudo, na circunstância de não pintar com pincel largo um cenário da maior plasticidade possível, no qual figuras em trajes exóticos se tornam personagens de um teatro folclórico divertido. Trojanow de fato consegue formular de modo convincente, usando o instrumentário do romance histórico, as questões acerca da essência do estranho, acerca das possibilidades e estratégias de se apossar do estranho, sem destruí-lo em sua individualidade, que jamais se deixaria dissolver até o fim. Através do refinamento da narração em perspectiva, através dos olhares do inglês sobre a Índia – aos quais são contrapostas as opiniões admiradas do indiano sobre seu senhor inglês –, através dos encontros de viagem na África e na Arábia, entretecidos na narrativa, o estranho e o estrangeiro mostram ser meramente a atribuição daquele que entrou em contato com eles pela primeira vez.

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