quinta-feira, 30 de abril de 2009

Slavoj Zizek

http://www.ff.uni-lj.si/oddelki/filo/english/staff/zizeka.htm
Queda do World Trade Center ruiu percepção de que EUA poderiam viver em um mundo de especulações desconectadas da esfera da produção material e força país a atravessar tela fantasmática que o separa do exterior A fantasia paranóica americana máxima é a de um indivíduo vivendo em uma pequena e idílica cidade californiana, um paraíso consumista, indivíduo que de repente começa a suspeitar que o mundo no qual vive seja falso, um espetáculo encenado para convencê-lo de que ele vive em um mundo real, enquanto todas as pessoas à sua volta são efetivamente atores e figurantes em um programa gigante. O exemplo mais recente disso é "The Truman Show" (1998), de Peter Weir, com Jim Carrey no papel de um vendedor de seguros da cidadezinha que gradualmente descobre ser o protagonista de um programa de TV permanente e transmitido 24 horas por dia: sua cidade natal é construída dentro de um gigantesco set de filmagem, com câmeras que o seguem permanentemente. Entre seus predecessores, vale a pena mencionar o livro "Time Out of Joint" (Tempo Fora dos Eixos), de Philip K. Dick, no qual o protagonista, vivendo uma vida cotidiana modesta na mesma idílica cidade californiana no final dos anos 50, gradualmente descobre que a cidade inteira é um embuste encenado de forma a mantê-lo satisfeito...
A experiência subjacente de "Time Out of Joint" e "The Truman Show" é que o paraíso consumista californiano do capitalismo tardio é, em sua própria hiper-realidade, de certa forma irreal, insubstancial, privado de inércia material. Então não é apenas Hollywood que encena uma aparência de vida real privada do peso e da inércia da materialidade -na sociedade consumista do capitalismo tardio, a própria "vida social real" de algum modo adquire características de uma sociedade encenada, com nossos vizinhos na vida "real" agindo como atores e figurantes... Novamente a verdade máxima do universo capitalista, utilitário e desespiritualizado, é a desmaterialização da própria "vida real", a inversão desta em um show espectral. Entre outros, Christopher Isherwood deu expressão a essa irrealidade da vida cotidiana norte-americana, exemplificada no quarto de motel: "Motéis norte-americanos são irreais! (...) Eles são deliberadamente projetados para serem irreais. (...) Os europeus nos odeiam porque nós nos retiramos para viver dentro de nossas propagandas, como ermitões entrando em cavernas para se dedicar à contemplação". O conceito de Peter Sloterdijk de "esfera" é aqui literalmente realizado, como a gigantesca esfera de metal que envolve e isola a cidade inteira. Anos atrás, uma série de filmes de ficção científica como "Zardoz" (1974) e "Logan's Run" (1976) prognosticou a condição pós-moderna atual ao estender essa fantasia à própria comunidade: o grupo isolado vivendo uma vida asséptica em uma área isolada ambiciona a experiência de um mundo real de decadência material. "Matrix" (1999), o hit dos irmãos Wachowski, trouxe essa lógica ao seu ápice: a realidade material que todos nós experimentamos e vemos à nossa volta é uma realidade virtual, gerada e coordenada por um gigantesco megacomputador ao qual estamos todos conectados; quando o herói (papel desempenhado por Keanu Reeves) desperta na "realidade real", ele vê uma paisagem arrasada plena de ruínas queimadas -o que restou de Chicago após uma guerra mundial. O líder da resistência Morpheus pronuncia a saudação irônica: "Bem-vindo ao deserto do real". Não foi algo da mesma ordem que ocorreu em Nova York no dia 11 de setembro? Seus cidadãos foram apresentados ao "deserto do real" - para nós, corrompidos por Hollywood, a paisagem e as cenas que vimos das torres arruinadas não puderam deixar de nos lembrar das sequências mais impressionantes dos grandes filmes de catástrofe. Ao ouvir como os ataques foram um choque totalmente imprevisto, como o inimaginável impossível aconteceu, deve ser lembrada outra catástrofe definidora, do começo do século 20: aquela do Titanic. Também foi um choque, mas o espaço para ele já havia sido preparado em fantasias ideológicas, já que o Titanic era o símbolo do poder da civilização industrial do século 19. O mesmo não é verdade para esses ataques? Não apenas a mídia nos bombardeava o tempo todo falando da ameaça terrorista; essa ameaça era também obviamente libidinalmente investida -basta lembrar a série de filmes, de "Fuga de Nova York" a "Independence Day". O impensável que aconteceu era portanto o objeto de fantasia: de certo modo, os EUA receberam aquilo que era o objeto de suas fantasias, e isso foi a surpresa maior. É precisamente agora, quando estamos lidando com o real cru da catástrofe, que devemos ter em mente as coordenadas ideológicas e fantasmáticas que determinam a percepção dela. Se há algum simbolismo no colapso das torres do World Trade Center, ele não é tanto a antiga noção de "centro do capitalismo financeiro", mas, ao contrário, a noção de que as duas torres representavam o centro do capitalismo virtual, de especulações financeiras desconectadas da esfera da produção material. O impacto estilhaçador dos ataques só pode ser medido contra a fronteira que hoje separa o Primeiro Mundo digitalizado do Terceiro Mundo "deserto do real". É a consciência de que nós vivemos em um universo artificialmente isolado que gera a noção de que um agente ominoso nos ameaça todo o tempo com a destruição total.

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