– O senhor já observou que a ciência pode ser "religiosa, no sentido não sobrenatural da palavra". Poderia explicar essa expressão?Dawkins – Eu não estava falando da religião que acredita em um Deus que ouve nossas preces. Einstein considerava-se religioso, embora não acreditasse em nenhum plano sobrenatural. Ele só usava a palavra "religião" para definir seu sentimento de espanto e mistério diante do universo. Eu empreguei a palavra no mesmo sentido em um ensaio, mas isso talvez não seja recomendável. Há muita gente ansiosa por deturpar formulações como essa. Muitos gostariam de trazer pessoas como Einstein para o bloco dos crentes, ao qual ele certamente não pertencia.– Um cientista não pode ser religioso?Dawkins – Pode, e muitos cientistas são. Mas eu não consigo entender suas razões. Talvez seja um tipo de cérebro repartido: eles mantêm suas crenças religiosas em um nicho, e a ciência em outro. Tenho dificuldade em simpatizar com isso. Se eu mantivesse crenças contraditórias, tentaria refletir sobre o tema até me decidir por um lado ou outro. – O senhor afirma que evolucionistas não deveriam participar de debates públicos com partidários do criacionismo. Por quê?Dawkins – Essa é uma proposta minha e do paleontologista americano Stephen Jay Gould. Pretendíamos escrever um texto conjunto sobre o tema, mas Gould morreu antes de revisar o esboço que apresentei a ele. Os criacionistas buscam esse debate para conquistar um verniz de respeitabilidade intelectual. Eles não têm esperança de "vencer" a discussão: querem apenas ser reconhecidos no mesmo palanque ocupado por um cientista de verdade. Por isso devemos evitar esses encontros.– Essa recusa não passaria a idéia de que os darwinistas são arrogantes ou temem o debate?Dawkins – Talvez sim. É muito difícil lidar com esse problema. Gould e eu podemos estar errados, mas essa é a posição que tomamos, e, no momento, eu ainda a sustento. Talvez, para evitar o perigo de conferir status demais ao criacionismo, o ideal seria que apenas estudantes de pós-graduação ou mesmo de graduação participassem desse tipo de debate. Eles estariam tão capacitados quanto eu para refutar os criacionistas, cuja argumentação não é tão refinada assim. – A espécie humana não teria uma necessidade natural de religião?Dawkins – Não creio que seja uma necessidade universal. Se a demanda é por reverência e espanto diante da vida e do universo, a ciência pode satisfazê-la. Se a demanda é por conforto diante da morte, então talvez a ciência não possa satisfazê-la. Seja como for, reconhecer que existam necessidades pessoais ou coletivas atendidas pela religião não equivale a dizer, de maneira nenhuma, que exista verdade nas concepções religiosas. – O senhor acredita que algum dia a humanidade possa viver sem religião?Dawkins – Não por um longo tempo. E eu jamais proporia qualquer forma de proibição à atividade religiosa. A resposta está na atividade à qual me dedico: a educação. Quanto mais educação houver, mais teremos discussões racionais e pensamento inteligente, e mais difícil será para a religião sobreviver. – Há beleza na ciência?Dawkins – A verdade é bela em si mesma. E existe uma elegância própria do conhecimento. Einstein comovia-se com a beleza das equações. Além disso, os fenômenos que biólogos ou astrônomos estudam – árvores, pássaros, estrelas – são belos em si mesmos. Lidar com eles é lidar com o belo. – Quando se discute bioética, a questão da clonagem humana é sempre levantada. Seria mesmo o problema mais importante hoje?Dawkins – Não, não é um problema tão importante. As pessoas se opõem a essa idéia por razões variadas. Todas as tecnologias reprodutivas envolvem a morte de embriões, e há um preconceito religioso contra isso. Há quem reaja com nojo diante da idéia de clonagem humana. Imaginam, digamos, centenas de Saddam Hussein marchando no mesmo passo, o que de fato é uma perspectiva aterrorizante. Mas ela está calcada em idéias falsas como, por exemplo, a de que um clone não teria personalidade individual. Geneticamente, gêmeos idênticos são clones um do outro – e têm, como bem sabemos, personalidades independentes. Há muita mistificação sobre esse tema.– O senhor acredita que esse tipo de clonagem vá ocorrer?Dawkins – Não com a tecnologia que temos hoje, que produziu a ovelha Dolly, um único clone, ao custo de muitos embriões perdidos. De qualquer forma, a criação de um clone humano nunca foi proposta seriamente. Propõe-se, isso sim, a clonagem de células-tronco, para propósitos médicos. As únicas objeções a isso, repito, têm motivação religiosa, e são estúpidas.– Devem-se impor limites ao conhecimento científico?Dawkins – Questões sobre o que é certo ou errado não comportam verdades absolutas. São matéria de julgamento e ponderação. A ciência não pode decidir sobre esses problemas – pode apenas demonstrar incoerências nas posições que tomamos. A decisão, por exemplo, de proibir ou não o desenvolvimento de armas biológicas não é um problema científico. É algo que tem de ser discutido pela sociedade em geral – políticos, juristas, cidadãos.
– O senhor já demonstrou entusiasmo pela idéia de que um dia talvez seja possível reconstituir geneticamente o elo perdido entre o ser humano e os outros primatas. Como seria isso?Dawkins – O geneticista sul-africano Sydney Brenner propôs que um dia talvez possamos, a partir do genoma do homem e do chimpanzé, fazer uma projeção retrospectiva até nossos antepassados. Uma espécie de "média" entre os dois genomas seria próxima do ancestral comum de homens e chimpanzés, que viveu em torno de 6 milhões de anos atrás. Com esse código genético em mãos, talvez a tecnologia embriológica do futuro seja capaz de criar esse ser vivo, um espécime do nosso antepassado comum, o elo perdido. Teríamos vivo, respirando na nossa frente, um ser que é intermediário entre o homem e outra espécie animal. Um experimento desse tipo seria um duro golpe contra a arrogância humana. Isso poderia mudar o antropocentrismo da nossa ética e da nossa moral. Hoje, todos os intermediários estão extintos, o que fomenta a idéia falsa de que ocupamos um espaço à parte na natureza. A biologia atual não vê o homem como o pináculo da evolução. O darwinismo não faz valorações desse tipo. Quando um darwinista fala em um animal "melhor" quer dizer apenas melhor em reproduzir-se, em passar adiante sua carga de genes. – O senhor tem escrito muitos artigos criticando o presidente americano George W. Bush. Faz isso como cientista ou como cidadão?Dawkins – Existem cientistas cujo interesse em política é tão dominante que acaba colorindo suas pesquisas, inclusive as mais técnicas. Creio que esse tipo de mistura não é aconselhável. Digamos que me pronuncio como um cidadão com um nível elevado de conhecimento científico. Bush não tem nenhum interesse em ciência, a não ser na medida em que ela possa ser usada para fins militares, e é uma ameaça ao meio ambiente, pela recusa em assinar o Protocolo de Kioto. O mundo seria um lugar melhor sem ele. – O senhor recentemente esteve em Galápagos, onde Darwin fez muitas observações que embasaram sua teoria. Ainda é um local privilegiado para observar a evolução?Dawkins – Sim. As ilhas são muito novas, têm só 3 ou 4 milhões de anos, e nesse tempo limitado houve nelas uma diversificação de espécies fabulosa. É impressionante como os animais lá são pouco ariscos. Talvez porque tenha havido muito pouca predação, você pode caminhar até muito próximo deles. E eles não fogem. É como estar em um imenso zoológico a céu aberto, sem jaulas. Muito pouco mudou desde a época em que o jovem Darwin esteve lá, em 1835, perguntando-se exatamente sobre o "mistério dos mistérios" que era o surgimento de novas espécies. Embora o triunfo de Darwin pudesse ter sido gestado em qualquer lugar do universo, ele foi fruto de uma viagem de cinco anos ao redor do planeta, na qual Galápagos foi uma das escalas mais importantes.
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