quarta-feira, 29 de abril de 2009

Judith Butler

Em maio de 1996 Judith Butler fez uma rápida viagem pela Europa.Começou com uma visita relâmpago à Holanda, onde seu trabalho vem sendo acompanhado com grande interesse. Butler foi recebida pelo Departamento de Estudos da Mulher, do Instituto de Artes da Universidade de Utrecht. Para nós, sua presença em carne e osso pareceu uma boa oportunidade para colocar diante dela nossas perguntas sobre noções tão complexas como as de performatividade de gênero, construção do sexo e abjeção dos corpos, questões que ela coloca em Gender Trouble (1990) e Bodies That Matter (1993). Os textos de Butler são leituras fascinantes mas nos deixam muitas vezes perplexas. Assim, apenas algumas horas após sua chegada, Butler foi abordada por duas ansiosas entrevistadoras holandesas. Era o início de uma valiosa e inspiradora troca de idéias. No dia seguinte, um seminário intensivo de pesquisa proporcionou a estudiosas holandesas da área de estudos da mulher uma oportunidade de colocar suas perguntas mais urgentes. À noite, tivemos uma instigante palestra sobre os limites das restrições legais sobre o discurso do ódio, seguida de uma calorosa discussão sobre os prós e os contras e as diferenças entre as regras políticas e constitucionais nos Estados Unidos e nos Países Baixos. Para nós, esses encontros concluíram, provisionalmente, uma longa e proveitosa imersão no pensamento de Butler. A entrevista que segue é o resultado de três etapas. Para nos prepararmos para o encontro com Butler, passamos várias animadas tardes e noites discutindo o trabalho dela e seu significado para nossa própria teorização e pesquisa. A segunda etapa se deu por escrito, quando Butler ofereceu elaboradas respostas a nosso primeiro conjunto de perguntas. A conversa face-a-face em Utrecht, finalmente, permitiu que os dois lados se explicassem, clarificassem suas idéias, tentassem eliminar mal-entendidos e se divertissem um pouco também.
A entrevista se concentra em três questões interrelacionadas. Em primeiro lugar, nos interessamos pela importância do trabalho de Butler e pelo modo como ela espera que ele seja entendido. Quais são suas reivindicações feministas e filosóficas? Trata-se de um exercício de cuidadosa análise conceitual, ou deve ser lido como uma ficção política? É uma crítica política a respeito da (não)representabilidade de (alguns) corpos, ou uma desconstrução da própria noção de representabilidade? Trata a questão epistemológica de como/se podemos conhecer nossos corpos (sexuados), ou é uma tentativa de compreender como os corpos (sexuados) podem ser ¾ o que seria uma questão ontológica? A resposta de Butler é inequívoca: suas preocupações principais não são as da filosofia 'conceitualmente pura', mas as de uma veia teórica muito mais política e estratégica. Concorda que suas proposições sobre a existência de corpos abjetos são francamente contraditórias. Mas, diz ela, são propositalmente contraditórias: colocadas como fórmulas performativas, são feitas para impor ou invocar essa existência 'impossível'. Podemos ver o trabalho de Butler como uma ficção política ¾ mas sempre nos dando conta de que ele oferece ficções que querem criar 'realidades'. Em um segundo momento, nos aprofundamos um pouco mais no significado da noção do 'abjeto'. Que tipos de corpos poderiam contar como corpos abjetos? Prostitutas, travestis, dementes? O corpo andrajoso, o corpo mutilado, o corpo velado? Fica claro que Butler reluta em dar exemplos. Mas explica em detalhe o porquê. Finalmente, a entrevista coloca questões sobre sexo e heterossexualidade. Não há outros eixos que determinem a exclusão dos corpos além de heterossexualidade, e não corremos o risco de reforçar exatamente o que se quer minimizar ao apresentar "a matriz heterossexual" como a fonte do todo o mal? Novamente, a resposta de Butler nos remete ao político e ao estratégico e não a razões filosóficas ou empíricas. "Posso estar exagerando", admite ela, "mas temo que colocar outras categorias de exclusão no mesmo patamar que a heterossexualidade pode levar à 'abjeção' do homossexual e especialmente do corpo lésbico."
IRENE MEIJER e BAUKJE PRINS: Preparando-nos para esta entrevista, muitas vezes nos questionamos sobre que tipo de trabalho Bodies That Matter na verdade é: deveríamos vê-lo como um exercício filosófico de análise conceitual, como crítica política, ou como um projeto estratégico de desconstrutivismo? Carolyn Heilbrun, em um ensaio sobre o valor da escrita das mulheres, declarou: "O que importa é que vidas não servem como modelo; somente histórias o fazem. E é difícil inventar histórias para servir de modelo. Podemos apenas recontar e viver as histórias que lemos ou ouvimos. Vivemos nossas vidas através de textos. (...) Seja qual for sua forma ou meio, essas histórias nos formaram a nós todas; são o que precisamos usar para criar novas ficções, novas narrativas".Até que ponto seu trabalho se enquadra nessa visão da escrita das mulheres? Seu projeto pode ser entendido como uma maneira de contar novas histórias para guiar nossas vidas? Ou você preferiria vê-lo como uma tentativa de fornecer a nós, feministas, novos instrumentos analíticos para criticar nossas vidas? Em outras palavras, como você gostaria que seu/sua leitor/a ideal lesse Bodies That Matter: como uma forma de ficção política ou como uma investigação filosófica de cunho diagnóstico? JUDITH BUTLER: Até posso entender a descrição de meu trabalho como ficção política, mas acho que é importante enfatizar que nem toda ficção aparece sob a forma de uma história. A interessante citação de Carolyn Heilbrun enfatiza "histórias" e sugere que a sobrevivência das mulheres se dá através de narrativas. Talvez seja verdade, mas não é bem dessa forma que trabalho. Acredito que um imaginário político contém todo tipo de maneiras de pensar e de escrever que não são necessariamente histórias, mas que são fictícias, no sentido de que delineiam modos de possibilidade. Meu trabalho sempre teve como finalidade expandir e realçar um campo de possibilidades para a vida corpórea. Minha ênfase inicial na desnaturalização não era tanto uma oposição à natureza quanto uma oposição à invocação da natureza como modo de estabelecer limites necessários para a vida gendrada. Pensar os corpos diferentemente me parece parte da luta conceitual e filosófica que o feminismo abraça, o que pode estar relacionado também a questões de sobrevivência. A abjeção de certos tipos de corpos, sua inaceitabilidade por códigos de inteligibilidade, manifesta-se em políticas e na política, e viver com um tal corpo no mundo é viver nas regiões sombrias da ontologia. Eu me enfureço com as reivindicações ontológicas de que códigos de legitimidade constroem nossos corpos no mundo; então eu tento, quando posso, usar minha imaginação em oposição a essa idéia. Portanto, não é um diagnóstico, e não apenas uma estratégia, e muito menos uma história, mas um outro tipo de trabalho que acontece no nível de um imaginário filosófico, que é organizado pelos códigos de legitimidade, mas que também emerge do interior desses códigos como a possibilidade interna de seu próprio desmantelamento. IM e BP: Conforme entendemos, em Bodies That Matter você aborda um dos problemas mais espinhosos para o/a construtivista radical, ou seja, o de como conceber a materialidade em termos construtivistas. Com o auxílio da noção da performatividade da linguagem, você consegue evocar a imagem tanto da solidez quanto da contingência dos chamados fatos empíricos. Você constrói um poderoso argumento através do qual pensamos poder refutar os severos argumentos realistas sobre a incontestabilidade de "Death and Furniture". Numa tentativa de captar os argumentos do seu livro, diríamos que ele revela o caráter constitutivo das construções discursivas. Mais particularmente, ele mostra que as condições sob as quais os corpos materiais, sexuados, tomam forma estão relacionadas a sua existência, à possibilidade de serem apreendidos e a sua legitimidade. JB: Gosto muito deste último resumo de minhas reivindicações. Entretanto, acho que pode ser um erro argumentar que Bodies That Matter é um trabalho construtivista ou que procura considerar a materialidade em termos construtivistas. Seria igualmente correto ¾ ou possível ¾ dizer que ele busca entender por que o debate essencialismo/construtivismo tropeça em um paradoxo que não é facilmente ou, na verdade, não é jamais superado. Assim como nenhuma materialidade anterior está acessível a não ser através do discurso, também o discurso não consegue captar aquela materialidade anterior; argumentar que o corpo é um referente evasivo não equivale a dizer que ele é apenas e sempre construído. De certa forma, significa exatamente argumentar que há um limite à construtividade, um lugar, por assim dizer, onde a construção necessariamente encontra esse limite. IM e BP: No prefácio a Bodies That Matter, você admite haver uma certa necessidade e irrefutabilidade das experiências primárias, como corpos vivendo, comendo, sentindo dor e morrendo. "Mas", continua, "sua irrefutabilidade de modo algum sugere o que significaria afirmá-los e através de quais meios discursivos." Aqui você sugere que estará abordando questões referentes à possibilidade de conhecimento, isto é, referentes aos efeitos constitutivos da afirmação de experiências primárias separadamente do fato de serem irrefutáveis e primárias. Por outro lado, você enfatiza seguidamente que Bodies That Matter é mais que "apenas" um projeto epistemológico. Parece que você quer também abordar a questão de como o mundo é, independentemente de como o percebemos/construímos. Nesse sentido, ficamos intrigadas por seu uso da palavra "há". Na maioria dos casos, como em "não há um ator por trás do ato", ela é empregada na forma negativa. Com esse uso você pretende negar a "originalidade" da entidade em questão ¾ e não sua existência como tal. Mas qual seria então a condição desse "há" em frases afirmativas, como "há uma matriz de relações de gênero" ou "há um exterior [constitutivo]"? Se elas não sugerem o caráter pré-discursivo da matriz heterossexual ou o exterior constitutivo, a que então se referem?
JB: É uma boa pergunta, e me alegro por ter a oportunidade de respondê-la. Para mim a questão de como chegamos a conhecer algo, ou, de fato, as condições da possibilidade de afirmarmos que sabemos, podemos respondê-la melhor se nos voltarmos para uma questão anterior: quem é esse 'nós' que faz com que a questão se torne uma questão para nós? Como é que esse 'nós' foi construído em relação a essa questão do conhecimento? Em outras palavras: como a própria questão epistemológica se tornou possível? Foucault oferece um outro passo, tornado possível pelo tipo de trabalho que realiza. Esse passo tem a ver com a indagação sobre como certos tipos de discurso produzem efeitos ontológicos ou operam através da circulação de movimentos ontológicos. Em parte, vejo-me trabalhar no contexto de discursos que operam através de argumentos ontológicos ¾ "não há um ator por trás do ato" ¾ recirculando o "há" para produzir um contra-imaginário à metafísica dominante. Com efeito, parece-me crucial recircular e ressignificar os operadores ontológicos, mesmo que seja apenas para apresentar a própria ontologia como um campo questionado. Acho, por exemplo, que é crucial escrever frases que começam com 'acho', mesmo correndo o risco de ser mal interpretada como adicionando o sujeito ao ato. Não existe nenhuma forma de contestar esses tipos de gramáticas a não ser habitá-las de maneiras que produzam nelas uma grande dissonância, que 'digam' exatamente aquilo que a própria gramática deveria impedir. A razão pela qual a repetição e a ressignificação são tão importantes para meu trabalho tem tudo a ver com o modo de eu conceber a oposição como algo que opera do interior dos próprios termos pelos quais o poder é reelaborado. A idéia não é baixar uma proibição contra o uso de termos ontológicos mas, ao contrário, usá-los mais, explorá-los e resgatá-los, submetê-los ao abuso, de modo que não consigam mais fazer o que normalmente fazem.Há, entretanto, algo mais a considerar, que nos remete de volta à questão do construtivismo. Expressões como "há uma matriz de relações de gênero" parecem se referir, mas também se referem lateralmente, dentro da linguagem, às convenções de atribuição ontológica. São 'mímicas' filosóficas no sentido descrito por Luce Irigaray. Referem-se a certos tipos de convenções filosóficas. Mas também quero sustentar que a reivindicação ontológica nunca pode apreender totalmente seu objeto, visão esta que me diferencia um pouco de Foucault e me alinha temporariamente com a tradição kantiana, conforme utilizada por Derrida. O "há" aponta em direção a um referente que não consegue capturar, porque o referente não está completamente construído na linguagem, não é o mesmo que o efeito lingüístico. Não existe um acesso a ele fora do efeito lingüístico, mas o efeito lingüístico não é o mesmo que o referente que não consegue capturar. É isso que permite que existam várias maneiras de se referir a algo, e nenhuma das quais pode alegar ser aquela a que a referência é feita.
IM e BP: O trocadilho de seu título é muito feliz: "bodies that matter" ao mesmo tempo se materializam, adquirem significado e obtêm legitimidade. Corpos que não importam são corpos 'abjetos'. Tais corpos não são inteligíveis (um argumento epistemológico) e não têm uma existência legítima (um argumento político ou normativo). Daí, não conseguem se materializar. Entretanto, você argumenta que os corpos abjetos também 'existem', isto é, como um poder excluído, disruptivo. A essa altura, ficamos um tanto confusas: corpos que não conseguem se materializar podem mesmo assim 'ser' corpos? Se você quer que o conceito de 'abjeto' se refira a corpos que 'existem', não seria mais adequado dizer que, embora corpos abjetos sejam construídos, tenham se materializado e adquirido inteligibilidade, ainda assim não conseguem ser qualificados como totalmente humanos? Em outras palavras, não seria o caso dizer que corpos abjetos importam ontológica e epistemologicamente, mas ainda não são considerados num sentido político-normativo? JB: Realmente, em um sentido estritamente filosófico, dizer ao mesmo tempo que "há" corpos abjetos e que eles não têm reivindicação ontológica parece ser o que habermassianos denominariam uma contradição performativa. Bem, poderíamos tomar uma posição medieval e escolástica a esse respeito e dizer, ah sim, que alguns tipos de seres têm existência ontológica mais completa que outros, etcetera, etcetera. Permaneceríamos, assim, dentro de um tipo de esquema filosófico que seria conceitualmente satisfatório. Mas eu gostaria de fazer um outro tipo de pergunta. Ou seja: como é que o domínio da ontologia, ele próprio, está delimitado pelo poder? Como é que alguns tipos de sujeitos reivindicam ontologia, como é que eles contam ou se qualificam como reais? Nesse caso, estamos falando sobre a distribuição de efeitos ontológicos, que é um instrumento de poder, instrumentalizado para fins de hierarquia e subordinação, e também com vistas à exclusão e à produção de domínios do inimaginável. Todo esse território da ontologia que o bom filósofo, aquele conceitualmente puro, considera óbvio já vem profundamente corrompido em sua origem. Ora, não podemos olhar a gramática e dizer: "Se eu disser que há corpos abjetos, devo conseqüentemente ser capaz de retroceder, a partir da afirmação 'há', para uma ontologia anterior". Dificilmente, dificilmente. O que eu poderia dizer é que "há corpos abjetos", e isso poderia ser um performativo ao qual eu atribuo ontologia. Eu atribuo ontologia exatamente àquilo que tem sido sistematicamente destituído do privilégio da ontologia. O domínio da ontologia é um território regulamentado: o que se produz dentro dele, o que é dele excluído para que o domínio se constitua como tal, é um efeito do poder. E o performativo pode ser uma das formas pelas quais o discurso operacionaliza o poder. Assim , estou realizando uma contradição performativa, propositalmente. E estou fazendo isso exatamente para confundir o filósofo conceitualmente correto e para colocar a questão da condição secundária e derivativa da ontologia. Para mim não se trata de uma pressuposição. Mesmo se eu disser que "há corpos abjetos que não gozam de uma determinada situação ontológica", eu realizo essa contradição de propósito. E estou fazendo isso precisamente para jogar no rosto daqueles que diriam: "Mas você não estaria pressupondo...?" Não! Minha fala não precisa necessariamente pressupor... Ou, se o faz, tudo bem! Talvez esteja produzindo o efeito de uma pressuposição através de sua performance, OK? E isso é ótimo! Comecem a se acostumar! Mas trata-se claramente de inaugurar um novo domínio ontológico, não de pressupor um que já exista. Trata-se de instituir um domínio discursivamente.
IM e BP: Mesmo assim, ainda fica difícil apreender a noção do 'abjeto' em seu trabalho, o que pode ser devido ao caráter eminentemente abstrato da maioria de suas definições e descrições. Você parece um tanto relutante em dar exemplos mais concretos do que poderia ser considerado corpos abjetos. JB: Bem, sim, certamente. Pois, como se sabe, as tipologias são exatamente o modo pelo qual a abjeção é conferida: considere-se o lugar da tipologia dentro da patologização psiquiátrica. Entretanto, prevenindo qualquer mal-entendido antecipado: o abjeto para mim não se restringe de modo algum a sexo e heteronormatividade. Relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas 'vidas' e cuja materialidade é entendida como ''não importante'. Para dar uma idéia: a imprensa dos Estados Unidos regularmente apresenta as vidas dos não-ocidentais nesses termos. O empobrecimento é outro candidato freqüente, como o é o território daqueles identificados como 'casos' psiquiátricos.IM e BP: Concordamos que falar abertamente sobre esse assunto se aproxima dos limites do que pode ser dito. Mesmo assim, você poderia desenvolver esse tópico um pouco mais?JB: OK, farei isso, mas tenho que fazer outra coisa ao mesmo tempo. Poderia enumerar muitos exemplos do que considero ser a abjeção dos corpos. Podemos notá-la, por exemplo, na matança de refugiados libaneses: o modo pelo qual aqueles corpos, aquelas vidas, não são entendidos como vidas. Podem ser contados, geralmente causam revolta, mas não há especificidade. Posso verificar isso na imprensa alemã quando refugiados turcos são mortos ou mutilados. Seguidamente podemos obter os nomes dos alemães que cometem o crime e suas complexas histórias familiares e psicológicas, mas nenhum turco tem uma história familiar ou psicológica complexa que o Die Zeit alguma vez mencione, ou pelo menos nenhuma que eu tenha encontrado em minhas leituras desse material. Assim, recebemos uma produção diferenciada, ou uma materialização diferenciada, do humano. E também recebemos, acho eu, uma produção do abjeto. Então, não é que o impensável, que aquilo que não pode ser vivido ou compreendido não tenha uma vida discursiva; ele certamente a tem. Mas ele vive dentro do discurso como a figura absolutamente não questionada, a figura indistinta e sem conteúdo de algo que ainda não se tornou real. Mas seria um grave erro pensar que a definição do abjeto se esgota nos exemplos que dou. Gostaria de protelar qualquer solução fácil até encontrar um aparato conceitual que proporcionasse à operação da abjeção uma espécie de autonomia relativa, de até mesmo um vazio, uma falta de conteúdo ¾ exatamente para não poder ser captada através de seus exemplos, de modo que seus exemplos não pudessem se tornar normativos do que queremos significar por abjeto. O que seguidamente acontece é que as pessoas apresentam teorias abstratas sobre coisas do tipo da abjeção, depois dão os exemplos, e então os exemplos se tornam normativos de todo o resto. O processo se torna paradigmático e acaba por produzir suas próprias exclusões. Torna-se fixo e normativo no sentido de rigidez. IM e BP: Então, a abjeção é um processo? Um processo discursivo? JB: Acho que sim! Acho que tem que ser, sim.IM e BP: Então, não se trata de corpos em si, mas do modo como aparecem no discurso? Nós, por exemplo, nos perguntamos se o corpo oriental, o corpo velado, o corpo feminino sob véus, quando entra no espaço público, conta como exemplo do abjeto. Hesitamos a esse respeito, porque esse corpo, essa mulher, age de acordo com uma norma estabelecida. De certa forma não conseguimos conciliar abjeção com normatividade. JB: Esta pergunta leva a algumas outras questões diferentes. Assim, deixem-me dar algumas outras respostas. Uma delas é que eu acho que discursos, na verdade, habitam corpos. Eles se acomodam em corpos; os corpos na verdade carregam discursos como parte de seu próprio sangue. E ninguém pode sobreviver sem, de alguma forma, ser carregado pelo discurso. Então, não quero afirmar que haja uma construção discursiva de um lado e um corpo vivido de outro. Mas o outro aspecto, que talvez seja mais importante aqui, é que nós também devemos nos preocupar com certas formas de descrever o orientalismo e especialmente aquele orientalismo que diz respeito a mulheres, a corpos de mulheres e à auto-representação das mulheres. Por exemplo, há vários debates sobre o véu. Existem algumas teóricas, teóricas feministas, que argumentam que o véu é, na verdade, muito complexo e que muitas vezes um certo tipo de poder que as mulheres exercem no contexto de países islâmicos de se expressar e ter influência é facilitado pelo véu, exatamente porque esse poder é desviado e tornado menos identificável. Então, se vocês me falassem da 'mulher sob o véu', significaria a mulher no Irã? A mulher de uma certa classe social? Em que contexto? Com que propósito? Qual é a ação, qual é a prática de que estamos falando? Em que contexto estamos tentando decidir se a mulher sob o véu é ou não um exemplo do abjeto? O que me preocupa é que, em certos casos, isso poderia ser visto como uma abjeção: no sentido de que essa mulher é literalmente proibida de mostrar sua face e assim entrar no domínio público de humanos com face. Em um outro nível, no entanto, poderíamos dizer que, como ocidentais, estamos reconhecendo mal um certo artefato cultural e instrumento religioso que tem sido uma das formas tradicionais de as mulheres exercerem poder. Esse debate específico sobre o véu tem atrapalhado os debates feministas. A questão é: as feministas estão sendo orientalistas quando assumem que a mulher sob o véu é sempre uma mulher abjeta? Quero deixar essa questão em aberto; é por isso que eu acho que deve haver uma incomensurabilidade entre a elaboração teórica da abjeção e seus exemplos. E pode até ser que o exemplo funcione em alguns contextos e não em outros. IM e BP: Falando em contexto, não seria isso o outro lado da questão do "há"? Como você mencionou antes, uma das funções da fórmula "há" é que você se engaja em um debate sobre ontologia, sobre o que é e o que pode ser pensado. Em Gender Trouble, você intervém no debate sobre a construção das identidades de gênero. Conforme você observa aqui, "a coerência interna ou unidade de cada gênero, homem ou mulher, requer uma heterossexualidade tanto estável quanto oposicional. Essa heterossexualidade institucional tanto requer quanto produz a univocidade de cada um dos termos gendrados que constituem o limite das possibilidades gendradas dentro de um sistema oposicional, binário de gênero".7 Nossa pergunta se refere à mencionada necessidade do caráter heterossexual de práticas que geram identidades estáveis. A matriz heterossexual também não obscurece os poderes performativos da divisão sexual entre mulheres? Historiadoras feministas têm mostrado que a estabilidade das identidades de gênero não dependem automaticamente de negociações heterossexuais, mas também de diferenças entre mulheres 'respeitáveis' e outras mulheres, entre homens 'respeitáveis' e outros homens. Questionar a normatividade da heterossexualidade é um gesto poderoso, mas será que não obscurece o fato de que as pessoas constroem noções de diferença não apenas através do gênero mas também de divisões sexuais/sexualizantes no interior dos gêneros através de categorias de raça, classe ou habilidades físicas? Mulheres portadoras de deficiência sofrem por serem estigmatizadas como menos femininas do que suas companheiras sem problemas físicos. Por outro lado, mulheres negras são às vezes estereotipadas como sendo mais 'mulheres', enquanto que em outros contextos são consideradas menos femininas (ladylike) do que mulheres brancas. A construção de identidades de gênero, estamos sugerindo, deu-se não apenas pela repetição da diferença entre mulheres e homens, femininidade e masculinidade, mas também pela constante afirmação da oposição hierárquica entre femininidade e falta de femininidade, entre masculinidade e falta de masculinidade. O que você acha do argumento de que o oposto de femininidade é freqüentemente não a masculinidade mas a falta de femininidade e de que essas noções nem sempre coincidem?
JB: Gosto muito da idéia de que o oposto de masculinidade não seja necessariamente a femininidade. Não tenho problemas com isso. Mas a relação entre sexualidade e gênero, da forma como vocês a colocam aqui, se baseia em Bodies That Matter. Na verdade, em Gender Trouble escrevi algo semelhante ao que vocês estão sugerindo. Embora em Bodies That Matter eu enfatize que a sexualidade é regulada através da degradação do gênero, isso certamente não funcionaria se o gênero não fosse ele próprio visto como adequado somente no contexto de uma certa regulação da sexualidade. Então não vejo problema com isso. Mas tenho lido muita história feminista que assume que tanto o que é adequado quanto o que é 'impróprio' na sexualidade feminina são tipos de heterossexualidade (dentro do casamento e fora dele, ou seja, doméstica e profissional). A questão que quero colocar tem a ver com o que permanece fora desses binários, o que não é nem mesmo mencionável como parte do impróprio ou incorreto. Temo que a questão da homossexualidade feminina é silenciada exatamente por esses esquemas históricos feministas que permanecem acriticamente amarrados a esses binarismos. Suponho que vocês estejam sugerindo que a sexualidade imprópria é uma rubrica ampla, que poderia acomodar todo tipo de prática sexual. Mas o que me preocupa é que a distinção entre o que é próprio e impróprio busca elidir a questão da homossexualidade. E acho que aí estou provavelmente disposta a cometer uma espécie de exagero retórico para manter viva a questão da homossexualidade, particularmente a do lesbianismo. O que não é a mesma coisa do que dizer que toda a investigação deveria fazer isso ou que essa é a opressão primária, ou a chave do problema, ou seja lá o que for. Mas indica onde eu me insiro no debate crítico atualmente. IM e BP: Ao colocar a heteronormatividade no centro, você não corre o risco de reproduzir sua importância? Não é uma recaída? Quando se quer estudar o conceito de mulher em um determinado tempo ou lugar, quando se quer saber quem pode ser considerada mulher e quem não pode ser, não seria mais esclarecedor olhar 'lateralmente', por exemplo, para a noção da não-mulher (unwomanly) ou do não-feminino?JB: Bem, vocês sabem, o que me preocupa é isso. Se o lesbianismo for entendido como uma dentre muitas formas de impropriedade, então a relação entre sexualidade e gênero permanece intacta no sentido de que não nos perguntaríamos sob quais condições o lesbianismo realmente afeta a noção de gênero. Não é simplesmente a questão de o que é uma mulher própria ou imprópria, mas o que não é absolutamente concebível como uma mulher! E é aqui que retornamos para a noção de abjeção. Eu acho que a abjeção tenta sinalizar o que permanece fora dessas oposições binárias, a ponto mesmo de possibilitar esses binarismos. Quem é considerada uma mulher 'imprópria'? Quem passa a ser denominada imprópria no texto que a historiadora estuda? Que tipos de atos são classificados ou designados ou nomeados? E quais são tão inomináveis e inclassificáveis que se tornam impróprios à impropriedade, ficando fora do impróprio? Refiro-me a atos que constituem um domínio daquilo que não pode ser dito e que condiciona a distinção entre impróprio e próprio. Ainda não somos capazes de considerar aqueles atos e práticas e modos de vida que foram brutalmente excluídos desse mesmíssimo binário próprio e impróprio. Eles não são a pré-história benigna desse binarismo, mas sim seu violento e inominável avesso. E é isso que eu quero continuar a abordar.IM e BP: E assim voltamos ao abjeto.JB: Acho que sim. O que vai ser realmente interessante é ver como se escreve uma história disso; os traços que foram, ou que estão sendo, na sua maior parte, apagados. É um problema muito interessante para uma historiadora. Como ler os traços daquilo que chega a ser falado. Não acho que seja impossível de fazer, mas acho que é um problema realmente interessante: como escrever a história daquilo que não deveria ter sido possível.IM e BP: Em seu desejo de ampliar o domínio de bodies that matter, você não está sozinha. Essa ambição é compartilhada por intelectuais de filiações filosóficas bastante diferentes. Lembramos especialmente os estudiosos da filosofia da ciência como Donna Haraway e Bruno Latour. Entretanto, suas propostas no sentido de ampliar nossos horizontes a respeito dessa questão não se concentram exclusivamente no domínio do que poderia ser considerado corpos humanos. Eles também desejam transformar nossos conceitos de 'Natureza' e das 'Coisas', para desenvolver considerações mais radicais da ecologia e da tecnologia. Por essa razão, preferem a noção de 'ator' à noção (humanista) de 'sujeito'. Ao contrário da subjetividade, o agenciamento não é uma prerrogativa dos humanos. Animais, árvores, máquinas ¾ por exemplo, qualquer coisa que tenha um impacto sobre ou que afete alguma outra coisa ¾ pode ser percebida como um ator. Tanto Haraway quanto Latour utilizam a noção do 'híbrido' para se referir a essa vasta área de atores que não são (vistos como) humanos. Como você avalia a relação entre sua própria teorização de corpos abjetos como desafios que produzem ruptura no que conta como totalmente humano e a afirmação de híbridos (não-humanos) por teóricos da ciência como Haraway e Latour? Por exemplo, seu conceito de corpos 'abjetos' acomoda a possibilidade de que corpos não-humanos passem a ser considerados matéria/se materializem? Ou o conceito se restringe ao universo do que 'pode ser vivido' como totalmente humano? JB: Acho que o trabalho de Haraway e Latour é muito importante. E não vejo problema com a noção de ator. Mesmo assim, acho que existem razões para se trabalhar com a noção de sujeito, razões que têm tudo a ver com o modo pelo qual ele está relacionado ao legado do humanismo. Gostaria de sugerir também que a noção de sujeito carrega com ela uma duplicidade que é crucial enfatizar: o sujeito é aquele que se presume ser a pressuposição do agenciamento, como vocês sugerem, mas o sujeito é também aquele que está submetido a um conjunto de regras que o precedem. Este segundo sentido funciona a contrapelo da concepção humanista de um self autônomo ou de um ator humano firmemente enraizado. Na verdade, a palavra 'ator' carrega uma ressonância teatral que seria muito difícil de ser adotada em meu trabalho, devido à tendência de ler 'performatividade' como um projeto goffmanesco de colocar uma máscara e escolher representar um papel. Prefiro trabalhar o legado do humanismo contra ele próprio, e acho que tal projeto não entra necessariamente em choque com aqueles/as que buscam desalojar o humanismo com vocabulários que dispersam o agenciamento através do campo ecológico. Há duas maneiras de desfazer o mesmo problema, e me parece importante ter teóricas e ativistas trabalhando em ambos os pólos.








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