terça-feira, 28 de abril de 2009

Gilles Deleuze:Tornar audíveis forças não-audíveis por si mesmas

Por que nós, não-músicos?O método empregado por Pierre Boulez selecionou cinco obras musicais. As relações entreessas obras não são relações de filiação nem de dependência; não há progressão ou evoluçãoentre cada uma dessas obras e as outras. É, antes, como se as cinco obras fossem semialeatoriamenteescolhidas, formando um ciclo no qual elas entrassem em reação umarelativamente à outra. Assim, se tece um conjunto de relações virtuais, do qual se poderia extrair um perfil particular de tempo musical que não valeria senão para as cinco obras. Poder-se-ia perfeitamente conceber que Boulez escolhesse quatro ou cinco outras obras: ter-se-ia um outro ciclo, outras reações e relações, e um outro perfil singular do tempo musical, ou de uma outra variável que não a do tempo. Isso não se faz por um método de generalização. Não se trata, de se elevar, a partir de obras tomadas como exemplos musicais, em direção a um conceito abstrato de tempo do qual se poderia dizer “Eis aqui o que é o tempo musical”, Trata-se, a partir de ciclos restritos, determinados sob certas condições, de extrair perfis particulares do tempo, com a possibilidade, em seguida, de superpor esses perfis, de fazer uma verdadeira cartografia das variáveis; e esse método diz respeito à música, mas pode também dizer respeito a mil outras coisas.No caso preciso do ciclo escolhido por Boulez, o perfil particular de tempo não pretende absolutamente esgotar a questão do tempo muscial em geral. Vê-se que, de um tempo pulsado,se despreende uma espécie de tempo não pulsado, com a possibilidade de que o tempo não pulsado retorne a uma nova forma de pulsação. A obra nº 1 (Ligeti) mostrava como, através de uma certa pulsação, se elevava um tempo não pulsado; as obras 2, 3 e 4 desenvolviam oumostravam aspectos diferentes desse tempo não pulsado; a última obra, nº 5, de Carter, mostrava como, a partir de um tempo não pulsado, encontrava-se uma nova forma de pulsação original,muito particular, muito nova.Tempo pulsado, tempo não pulsado, é algo completamente musical, mas é também toda uma outra coisa. A questão seria a de saber em que consiste precisamente esse tempo não pulsado. Essa espécie de tempo flutuante, que corresponde um pouco ao que Proust chamava de“um pouco de tempo em estado puro”. A característica mais evidente, mais imediata, é que um tal tempo, dito não pulsado, é uma duração, é um tempo liberado da medida, quer a medida seja regular ou irregular, quer ela seja simples ou complexa. Um tempo não pulsado nos coloca,inicialmente, e antes de tudo, em presença de uma multiplicidade de durações heterócronas,qualitativas, não coincidentes, não comunicativas. Vemos, desde logo, o problema: como essas durações heterócronas, heterogêneas, múltiplas, não coincidentes, como elas vão se articular, pois tudo mostra que estamos privados do recurso à solução mais geral e clássica que consiste em confiar ao espírito o cuidado de apor uma medida comum ou uma cadeia métrica a todas as durações vitais. Desde o início, essa solução está interditada.Correndo o risco de entrar em um domínio completamente diferente, penso queatualmente, quando os biólogos falam de ritmos, eles encontram questões análogas. Também eles deixaram de acreditar que os ritmos heterogêneos possam se articular, ao cair sob a dominação de uma forma unificante. As articulações entre ritmos vitais, os ritmos de 24 horas, por exemplo,eles não buscam a explicação para isso em uma forma superior que os unificaria, nem mesmo em um seqüência regular ou irregular de processos elementares. Eles buscam-na em um lugar completamente diferente, em um nível sub-vital, infra-vital, naquilo que eles chamam de uma população de osciladores moleculares capazes de atravessar sistemas heterogêneos, nas moléculas oscilantes colocadas em acoplamentos que, desde logo, atravessarão conjuntos e durações díspares. A colocação em articulação não depende uma forma unificável ou unificativa,nem métrica, nem de uma cadência ou medida, quaisquer que sejam, regulares ou irregulares,mas da ação de certos pares moleculares, deixados livres através de camadas diferentes e de ritmicidades diferentes. Não é apenas por metáfora que se pode falar de uma descoberta semelhante em música: moléculas sonoras antes que notas ou tons puros. Moléculas sonoras em acoplamento capazes de atravessar camadas de ritmicidade, camadas de duração inteiramente heterogêneas. Eis aí a primeira determinação de um tempo não pulsado.Há um certo tipo de individuação que não reporta a um sujeito (Mim), nem mesmo àcombinação de uma forma e de uma matéria. Uma paisagem, um acontecimento, uma hora datarde, uma vida ou um fragmento de vida... procedem diferentemente. Tenho o sentimento deque o problema da individuação em música, que é certamente muito complicado, é antes do tipodessas segundas individuações paradoxais. O que é chamamos de individuação de uma frase, deuma pequena frase em música? Gostaria de partir do nível mais rudimentar, do aparentementemais fácil. Ocorre que uma música nos faz lembrar uma paisagem. Assim, o caso célebre deSwann em Proust: o bois de Boulogne e a pequena frase de Vinteuil. Ocorre também que os sons evocam cores, seja por associação, seja por fenômenos ditos de sinestesia. Ocorre, enfim, que osmotivos nas óperas estejam ligados a personagens, por exemplo: considera-se que um motivowagneriano designa um personagem. Um tal modo de escuta não é nulo ou sem interesse, talvezmesmo num certo nível de distensão, seja preciso passar por aí, mas cada um sabe que isso não é suficiente. É que, em um nível mais tensionado, não é o som que remete a uma paisagem, mas amúsica, ela própria, que envolve uma paisagem propriamente sonora que lhe é interior (é o queocorre com Liszt). Poder-se-ia dizer a mesma coisa para a noção de cor, e considerar que asdurações, os ritmos, os timbres (com maior razão), são, em si mesmos, cores, cores propriamente sonoras que vêm se superpor às cores visíveis, e que não têm as mesmas velocidades nem as mesmas paisagens que as cores visíveis. Ocorre o mesmo com a terceira noção, a de personagem.Pode-se considerar, na ópera, certos motivos em associação com um personagem; mas os motivos em Wagner não se associam apenas a um personagem exterior, eles se transformam, têm uma vida autônoma em um tempo flutuante não pulsado, no qual eles se tornam, eles mesmos, e por si mesmos, personagens interiores à música.Essas três noções diferentes de paisagens sonoras, de cores audíveis, de personagem rítmica, aparecem, então, como aspectos sob os quais um tempo não pulsado produz suas individuações de um tipo muito particular.Somos levados, creio, de todos os lados, a não pensar em termo de matéria-forma. Aoponto que paramos de acreditar, em todos os domínios, na hierarquia que iria do simples aocomplexo, matéria-vida-espírito. Nós chegamos mesmo a pensar que a vida seria, antes, umasimplificação da matéria; pode-se acreditar que os ritmos vitais não encontram sua unificação em uma forma espiritual, mas, ao contrário, em acoplamentos moleculares. Toda essa hierarquia matéria-forma, uma matéria mais ou menos rudimentar e uma forma sonora mais ou menoselaborada, não foi isso que paramos de ouvir, e o que os compositores pararam de produzir? Oque se constitui é um material sonoro muito elaborado, não mais uma matéria rudimentar quereceberia uma forma. E o acomplamento se faz entre esse material sonoro muito elaborado eforças que por si mesmas não são sonoras, mas que se tornam sonoras ou audíveis pelo materialque as torna apreciáveis. É o que ocorre com o Diálogo entre o vento e o mar, de Debussy. Omaterial está aí para tornar audível uma força que não seria audível por si mesma, a saber, otempo, a duração, e mesmo a intensidade. A dupla matéria-forma é substituída pela duplamaterial-forças.Boulez: Éclats. Todo o material sonoro muito elaborado, com a extinção dos sons, estava feito para tornar sensível e audível dois tempos, eles próprios não sonoros, definidos, um como o tempo da produção em geral e o outro como o tempo da meditação em geral. Portanto, no lugar da dupla matéria/simples forma sonora, a última das quais informaria a primeira, colocamos um acoplamento entre um material elaborado e forças imperceptíveis que se tornam perceptíveis por meio desse material. A música, portanto, não é um assunto apenas dos músicos, na medida em que ela não tem por elemento exclusivo e fundamental o som. Ela tem por elemento o conjunto das forças não sonoras que o material sonoro elaborado pelo compositor vai tornar perceptíveis,de tal maneira que se poderia até mesmo perceber as diferenças entre essas forças, todo o jogo diferencial dessas forças. Estamos todos diante de tarefas bastante semelhantes. Em filosofia: a filosofia clássica se concede uma espécie de matéria rudimentar de pensamento, uma espécie de fluxo, que tentamos submeter a conceitos ou a categorias. Mas, cada vez mais, os filósofos têm procurado elaborar um material de pensamento muito complexo para tornar sensíveis forças que não são pensáveis por si mesmas.Não existe um ouvido absoluto, o problema é o de ter um ouvido impossível – tornar audíveis forças que são não audíveis por si mesmas. Em filosofia, trata-se de um pensamento impossível, isto é, tornar pensável, por meio de um material de pensamento muito complexo,forças que não são pensáveis.

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