terça-feira, 28 de abril de 2009

As praias de imanência por Gilles Deleuze

Tem-se com freqüência descrito o universo como um “universo em escada”, o que corresponde a toda uma tradição platônica, neo-platônica e medieval. É um universo que está pendurado no Uno como princípio transcendente, e que procede por uma série de emanações e de conversões hierárquicas. O Ser é, aí, equívoco ou analógico. Os seres têm, com efeito, mais ou menos “ser”, mais ou menos “realidade”, de acordo com seu distanciamento ou com sua proximidade relativamente ao princípio. Mas, ao mesmo tempo, toda uma outra inspiração atravessa esse cosmos. É como se praias de imanência fossem sendo empurradas através dos andares ou dos degraus, e tendessem a se juntar entre níveis. Ali o Ser é unívoco, igual: isto quer dizer que os seres são igualmente ser, no sentido em que cada um efetua sua própria potência em uma vizinhança imediata com a causa primeira. Não há mais causa distanciada: o rochedo, a florde lis, o animal e o homem cantam igualmente a glória de Deus em uma espécie de anarquiacoroada. As emanações-conversões dos níveis sucessivos são substituídas pela coexistência dedois movimentos na imanência, a complicação a explicação, nos quais Deus “complica todas ascoisas” ao mesmo tempo que “cada coisa” explica Deus. O múltiplo está no uno que o complica,da mesma forma que o uno está no múltiplo que o explica.E, provavelmente, a teoria não cessará de conciliar esses dois aspectos ou esses dois universos e, sobretudo, de subordinar a imanência à transcendência, de medir o Ser de imanência segundo a unidade de transcendência. Mas quaisquer que sejam os compromissos teóricos, há nos empurrões de imanência alguma coisa que tende a transbordar do mundo vertical, a tomá-lo ao revés, como se a hierarquia engendrasse uma anarquia particular, ou o amor de Deus, um ateísmo interno que lhe fosse próprio: a cada vez nós roçamos a heresia. E a Renascença não cessará de desenvolver, de estender esse mundo imanente, que não se concilia com a transcendência sem a ameaçar com um novo dilúvio.É isso que nos parece tão importante na obra de Maurice de Gandillac: a maneira pela qual ele enfatizou esse jogo da imanência e da transcendência, esses empurrões da imanência da Terra através das hierarquias celestes. A filosofia de Nicolas de Cues é um grande livro: é surpreendente que não se possa encontrá-lo, que não tenha sido reeditado.1 Assistimos à eclosão de um conjunto de conceitos, lógicos e ontológicos, que caracterizarão a filosofia dita moderna através de Leibniz e dos românticos alemães. Assim ocorre com a noção de Possest que exprime a identidade imanente do ato e da potência.
E essa aventura da imanência, essa concorrência da imanência com a transcendência, é já o que atravessa a obra de Eckhart, a dos místicos renanos ou, de uma outra maneira, a de Petrarca. Mas bem além disso, desde o início do neo-platonismo, Gandillac insiste sobre esses germes e esses espelhos de imanência. Em seu livro sobre Plotino, um dos mais belos que já se escreveu sobre Plotino, ele mostra como o Ser procede do Uno, mas não complica menos todos os seres em si mesmo, ao mesmo tempo que ele se explica em cada um deles.Imanência da imagem no espelho, e da árvore no germe: são as duas bases de uma filosofia expressionista. E mesmo no pseudo-Dionísio, o rigor das hierarquias deixa um lugar virtual para as praias da igualdade, da univocidade, da anarquia.Os conceitos filosóficos são também, para aquele que os inventa ou os libera, modos de vida e modos de atividade. Reconhecer o mundo das hierarquias, mas ao mesmo tempo atravessá-las por essas praias de imanência que as abalam mais do que as abalaria colocá-los diretamente em causa é justamente uma imagem de vida inseparável de Maurice de Gandillac. Há nele como que um homem da Renascença. Há nele um humor vivo, que se confunde precisamente com essa tecelagem de uma imanência: complicar as coisas ou as pessoas as mais diversas em um só e mesmo tecido, ao mesmo tempo que cada coisa, cada pessoa, explica o todo. Tolstoi diziaque, para atingir a alegria, era preciso prender, como em uma teia de aranha, e sem nenhuma lei,“uma velha, uma criança, uma mulher, um comissário de polícia”. É uma arte de viver e de pensar que Gandillac sempre exerceu e reinventou. E é seu sentido concreto de amizade.3 Nós a encontramos também em outra atividade de Gandillac, a de “debatedor”: se, com Geneviève deGandillac, ele deu uma nova vida aos Colóquios de Cerisy, foi por meio do escalonamento dasconferências sucessivas, ao inspirar um tipo de debate que traça precisamente praias deimanência ou as partes de um só e mesmo tecido. As intervenções explícitas de Gandillac podemser breves, elas têm um estranho teor e uma riqueza que fazem com que elas devessem serreunidas como bocados escolhidos. Esse teor vem do fato de que elas são muito freqüentementefilológicas, e nós tocamos uma vez mais em uma das atividades de Gandillac: se ele éprofundamente filólogo, e por isso mesmo germanista e tradutor, é porque o pensamentooriginário de um autor deve compreender, de alguma maneira, tanto o texto original quanto otexto derivado, ao mesmo tempo que o texto derivado deve, à sua maneira, explicar o original(sem, entretanto, nenhum desenvolvimento suplementar). As traduções de Gandillac –especialmente seu Zaratustra – podem ter suscitado, por sua força mesma,4 controvérsias: é que elas implicam toda uma teoria e toda uma concepção novas da tradução, sobre as quais Gandillac não deu até agora senão alguns indicações bastante raras. Mas é certamente um único e mesmo empreendimento que Gandillac persegue como filósofo, como historiador da filosofia, como professor, como tradutor, e como homem.



Nenhum comentário:

Postar um comentário