quarta-feira, 29 de abril de 2009

Daniel Innerarity

http://www.unizar.es/innerarity/editores4.htm
Muitos acontecimentos recentes parecem dar razão ao filósofo Fredric Jameson, que afirmava que sob as condições da globalização contemporânea a verdade do poder já não reside nos cenários em que ele é vivido de modo imediato (Postmodernism: The Cultural Logic of Late Capitalism, Londres, Verso, 1991). Pensemos em algumas coisas que aconteceram durante o ano que agora concluiu. A discussão mais metafísica que houve gravitava em torno da existência, ou não, de armas de destruição maciça que pudessem justificar a invasão do Iraque. Os argumentos não reconduziram as posições a nenhuma objectividade reconhecível, introduzindo-nos antes num terreno hipotético que mal fora explorado desde as discussões dos fins da Idade Média acerca do nominalismo. Quando os factos escasseavam, a discussão tornava-se barroca: do ser passava-se à possibilidade e esta era complicada com condições do terceiro grau e territórios conjuntivos. No final, a questão não era que houvesse armas, mas sim que pudesse haver armas; o facto de não serem achadas era a justificação mais forte para invadir o Iraque. É possível que as tivessem e que as destruíssem; é possível que as não tivessem mas que as tivessem tido ou desejassem tê-las. Nunca a linguagem política – habitualmente, tão simples – conjecturara de maneira tão profusa pelo espaço elucubrativo da probabilidade. Torna-se susceptível de ser invadido todo aquele que tiver armas de destruição maciça, mas também aquele cuja posse não possa ser provada, uma vez que essa prova nunca será absoluta, como acontece com todas as provas de inexistência, para cuja validade precisaríamos de uma investigação infinita. Provavelmente, o ano 2003 passará para a história como o ano da suspeita e da suposição, como a despedida absoluta de um mundo configurado por factos determinados pelos especialistas e cujas decisões são justificadas a partir de uma base objectiva.
Entramos numa cultura que é cada vez menos edificada a partir de realidades visíveis, onde a objectividade tem menos força que a suposição. Não faz muito sentido lamentar este facto, porque faz parte da complexidade social e das possibilidades configuradoras da nossa liberdade. A cultura incrementa o carácter construído das nossas instituições e abre horizontes que chegam mais além da esfera verificável do entorno imediato. A bolsa, a comunicação ou a política nem sequer podem ser compreendidas sem essa componente de simulação. O nosso contacto com as coisas acontece, quase sempre, através de simulações: é assim que a informática funciona, que um avião é pilotado ou os cálculos económicos são realizados. Os riscos, as ameaças e as possibilidades são mais reais que o imediato ou a objectividade. É este grande e inevitável artifício social que suscita uma inquietação social muito característica do nosso tempo: será tudo uma grande encenação beneficiada pela nossa dificuldade de verificar pessoalmente a veracidade daquilo que é dito ou o funcionamento daquilo que fazemos? O melhor exemplo de que essa suspeita é abrangente encontra-se na indústria do cinema, que aborda insistentemente essa fibra de desconfiança e paranóia. Pensemos na quantidade de filmes cujo tema essencial é a realidade, a questão do sonho ou do engano absoluto de que somos vítimas, a distinção entre a realidade e a ficção. O cinema tornou-se cartesiano e explora novas versões da figura do génio maligno que pretendia enganar-nos. A inquietação teórica que servia a Descartes para entreter escassas princesas transformou-se no fenómeno social de umas ameaças reconhecíveis para o grande público.
Talvez seja Matrix o mais emblemático dos filmes que tentam reconduzir essa confusão no sentido do esquema elementar em que o bem é confrontado com o mal, oferecendo desta forma uma terapia de reconfortante simplificação. Um outro exemplo excelente encontra-se no filme Good Bye, Lenin. Neste caso, uma das maiores transformações sociais – o colapso do comunismo e a reunificação alemã – é apresentada como uma modificação dos cenários; se os regimes são apenas reconhecíveis a partir das imagens dos meios ou dos produtos do supermercado, como afastar a suspeita de que toda a realidade é fundamentalmente simulação e aparência?Se tivéssemos que seleccionar uma imagem para ilustrar isto, eu escolheria a retirada do Iraque por parte dos especialistas cuja missão atribuída fora a localização das armas (refiro-me à sua retirada pouco tempo antes do começo da guerra, e a sua definitiva retirada, ao que parece, que foi decidida agora mesmo). Este abandono exemplifica muito bem a substituição do especialista, isto é, daquele que administra objectividades e dados que provam, justificam, sentenciam e põem um ponto final às discussões, pelo espia e pelo simulador que, a partir deste momento, são encarregues de gerir a suspeita pondo-a em circulação para os interesses que for. Ora bem, um mundo mais ambíguo e simulador gera, também ele, as suas próprias imbecilidades. Quando a suspeição é manipulada sem habilidade acaba por produzir perplexidade e o enganador chega a enganar-se a si próprio, como acontece no referido filme alemão, onde uma pequena mentira torna-se cada vez mais complexa até produzir um jogo incontrolável. A suspeita do mal produz uns erros específicos. Grande parte daquilo que tem acontecido no Iraque parece a realização sinistra do que alguns escritores se limitaram a imaginar como uma ridícula confusão. No romance O Trabalhador, Ernst Jünger escreve que uma qualquer fábrica de perfumes pode servir para construir armas químicas. Graham Greene conta em O Nosso Agente em Havana como o serviço de inteligência britânico confunde o esquema técnico de um aspirador e o de umas armas especiais. No horizonte conspirativo um qualquer esquema pode ser entendido como uma ameaça, tal como todo o gesto é interpretado como uma ocultação face a quem está completamente dentro da suspeita. Nada significa o que parece, nada acontece casualmente. As coisas são signos crípticos que encobrem uma conspiração total. O mundo é assim duplicado numa notícia cifrada que é preciso ler a partir dos indícios da sua mera aparência. Para a mentalidade paranóica nenhuma informação é fiável, nada elimina completamente a suspeita, e isto não apenas pelo facto de se mentir ou manipular expressamente, mas porque nunca são totalmente claros os interesses que estão na base da transmissão de uma informação. O melhor relato que eu conheço encontra-se num romance de espionagem de Robert Littel, The Defection of A. J. Lewinter (Londres, Hodder and Stroughton, 1973), em que um agente soviético raciocina com a seguinte lógica: «tudo depende daquilo que os americanos quiserem que nós acreditemos. Se eles quiserem que acreditemos na sinceridade de Lewinter, então quer dizer que esta não é verdadeira. Se quiserem que nós acreditemos que ela não existe, então quererá dizer que é verdadeira. É aqui que o assunto se torna complicado. Tendo a pensar que os americanos nos dão a entender que Lewinter é sincero com a esperança de que nós interpretemos esse sinal e concluamos que o não é. Conclusão: querem que nós acreditemos que ele é um isco. Conclusão: tem de ser sincero. Está a perceber o raciocínio?» Existe alguma relação entre o facto de o nosso mundo ser cada vez mais complexo e intransparente e que as teorias da conspiração sejam cada vez mais populares, a sensação de que a realidade é uma encenação, onde nada é o que parece e tudo é manipulado por umas instâncias difíceis de identificar? O escritor Thomas Pynchon definiu a paranóia como sendo a consciência de que está tudo ligado, o que curiosamente tem uma semelhança aguda com o modo como costuma ser definida a globalização. A interpretação do capitalismo feita por Deleuze e Guattari a partir da paranóia ganha agora uma nova actualidade. O conceito de guerra preventiva, por exemplo, corresponde plenamente a este contexto de complexidade e ambiguidade. Atribuindo direitos a quem meramente se sente ameaçado, consagra-se uma absoluta subjectivização da segurança. O medo deixa de ser governado num espaço público razoável e é emancipado de qualquer objectividade. As ameaças à nossa liberdade não são irreais, mas o modo de as afrontarmos pode ser inteligente ou pouco hábil, pode suscitar interpretações mais ricas da realidade social ou servir para aumentar interessadamente a cerimónia da confusão.
A tradução da obra de Daniel Innerarity A Transformação da Política, sob a chancela da Teorema, revela-nos um pensador do fenómeno político actual com uma profundidade capaz de enfrentar e repensar temas como a globalização, as identidades, o território, o contrato social, o consenso, o enfraquecimento do Estado, entre outros segundo o que chama «uma concepção trágica do pluralismo». Que nos diz este autor sobre a natureza do político?Uma das contribuições mais importantes de Innerarity é a forma como pensamos o antagonismo nas sociedades actuais e como integramos a diferença de perspectivas morais, os particularismos e os valores compartilhados nas democracias, visto que «A política organiza a coexistência humana em condições que são sempre conflituais.» (p. 122) Das duas uma: ou aceitamos essas diferenças irredutíveis numa plataforma possível que inclua o desacordo fundamental e o compromisso provisório, ou tentamos anulá-las num plano consensual e neutro à maneira de Habermas ou Rawls.Segundo Innerarity, o que caracteriza o fenómeno político não é o consenso, os valores compartilhados, a unidade e a ausência de conflito, mas o desacordo e o pluralismo irredutível das diferenças. Isto faz com que o princípio a eleger seja o da negociação e não o da universalidade. É preciso conviver com a vulnerabilidade, aconselha. A democracia deve, assim, preconizar o fim dos absolutismos – ter a maioria não é ter razão; quem ganha agora poderá perder a seguir e deverá estar preparado para isso Com o fim dos absolutismos doutrinários, a política tanto pode servir a oportunidade como o embuste: que novas tarefas destinar afinal ao milenar exercício dos governantes da Pólis? A política é a arte da racionalidade limitada, da decisão circunstancial. «Uma teoria política deveria incluir um elogio do aperto, da necessidade feita virtude. […] Como se pode demonstrar historicamente, o acerto político deve muito à impossibilidade de fazer outra coisa.» (p. 37) Porém o primado da acção não significa rendição às leis do mercado; nesta arte de fazer o que se pode, as omissões e indecisões são tão importantes como os actos. A política já não é a objectividade tecnocrática. Como já não há um único modelo a impor, a tarefa a realizar consiste em instituir o princípio da negociação: negociar o desacordo, configurá-lo entre o insólito e a incerteza. E nesta «acção sob condições de incerteza» não podemos esperar uma previsibilidade infalível. A política é a arte do possível, eis o que convém dizer aos senhores enfatuados com posturas de profetas definitivos do porvir. O compromisso político é, pois, uma questão de interpretação não de factos (como nos disse Nietzsche), e a discussão deve integrar o conflito e a decepção. Nesse caso, optar pelo desacordo não é seguir a via da guerra mas da liberdade - «No terreno político, por exemplo, não devemos ceder à obsessão da busca de consenso, mas arranjar maneira de viver sem ele ou, pelo menos, com um consenso que costuma ser parcial, frágil e que deve poder ser revisto.» (p. 133) Todo o consenso absoluto é imposto e forçado, é totalitário. Prescindindo das hierarquias encontramo-nos numa época pós-Estado, uma sociedade complexa e policêntrica, onde uma nova cultura política se impõe a partir do conceito de deslimitação, isto é, libertar os limites do Estado territorial e cultural procurando «formas de governo mais além do Estado nacional» (p. 175). Neste aspecto, sugiro que não estejamos no fim da História mas no fim do Estado.Numa altura em que assistimos por cá a tentativas governamentais de controlo dos media e na Rússia ao desbaratamento pela força das manifestações da oposição, o livro de Daniel Innerarity revela-nos como tudo isso está na contra-corrente do que deve ser a política contemporânea. As estratégias de poder incompatíveis com a liberdade são, no fundo, maus exemplos de como encarar hoje a política."A política é um âmbito de inovação, e não só de gestão. E a capacidade criadora tem estreitas relações com a invenção de uma linguagem apropriada para tratar o novo. Poderíamos encontrar aqui um novo eixo para delimitar a esquerda da direita, um indicativo para distinguir o progresso da tradição. O que é inovador é a capacidade de descobrir, nomear e enfrentar problemas; conservadora seria a segurança indiscutível, que oculta a dificuldade e dissimula as perple-xidades. E avançada a política que acolhe as interrogações incómodas que a preguiça mental evita com receio de ter de questionar os seus cómodos esquemas, as suas práticas habituais e a sua falta de atenção às coisas que se movem. A verdadeira demarcação política é a que distingue os que só encontram motivos para confirmar o que já sabiam daqueles que são capazes de incerteza. As novas situações lembram à política que, perante cada reforma, terá de formular uma interrogação: está na presença de problemas que pode, simplesmente, resolver ou de transformações históricas que exigem uma nova maneira de pensar? A inovação procede sempre de alguém ter querido saber se o que até então era dado por válido se ajustava às novas realidades. Quem for capaz de conceber a mudança como oportunidade verá como a erosão de alguns conceitos tradicionais, da sua rigidez e estreiteza, torna de novo possível a política.A política consiste, fundamentalmente, em formar uma ideia do conjunto e compatibilizar na medida do possível os elementos que estão em jogo. Para isso, é necessário dispor de uma visão geral (ou imaginá-la, actuando um pouco às cegas, por tentativas, e assumindo riscos, como habitualmente acontece). "Daniel Innerarityem "A Transformação da Política".Sumário : Pensar a ordem e a desordem: uma poética da excepção, de Daniel Innerarity; Da consciência quântica aos mundos paralelos tecnoxamânicos, entrevista a Roy Ascott por João Urbano e Gonçalo Furtado; Nova tecnologias, velhas ideias: Notas para uma genealogia da arte computacional, de André Favillao; Livro Porético, de Silva Carvalho; Desaparecimento, Falha e Êxodo, entrevista a João Tabarra por João Maria Gusmão e João Urbano; A Biotecnologia como Medialidade - Estratégias da Media Art Orgânica, de Jens Hauser; Da Programação do Inconsciente às Tecnologias Estéticas, entrevista a Hugo Liu por Paulo Urbano; Decon: Desconstrução, Descontaminação, Decomposição, de Marta de Menezes; Três Filmes Cerebrais para Gilles Deleuze, de Susana Viegas; A Tempestade, de João Urbano; Our machines/ our selfs. Corpos fragmentados e domesticados na reprodução assistida, de Martha Ramirêz-Gálvez

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