sábado, 10 de outubro de 2009

Scarlett Marton

Nietzsche
http://www.youtube.com/watch?v=69u306HnLvk
FILOSOFIA - Você acaba de lançar um livro sobre a recepção da Filosofia de Nietzsche na França. Pode falar um pouco sobre ele? E o que há de peculiar na interpretação francesa acerca do pensamento nietzschiano?Scarlett Marton - Eu já havia organizado trabalhos sobre a recepção da Filosofia de Nietzsche na Alemanha, Itália e América do Sul. No meu entender, precisávamos contemplar a cena francesa que também tem se mostrado bastante atuante. Nesse sentido, nos empenhamos em trazer para os pesquisadores brasileiros o que há de mais significativo sobre os estudos nietzschianos na França nos últimos tempos. Para tanto, trouxemos uma coletânea de textos de alguns pesquisadores franceses como: Eric Blondel, Patrick Wotling, Blaise Benoit, Céline Denat e Yannis Constantinidès.A meu ver, esses comentadores compõem, atualmente, uma escola de interpretação da Filosofia nietzschiana, pois possuem, em comum, uma maneira particular de trabalhar o texto do filósofo. Eles costumam eleger um problema específico e, a partir dele, desenvolvem todo um trabalho reflexivo. É uma metodologia que se afasta completamente de um trabalho de ordem genética. Ou seja, não se leva muito em conta o itinerário que Nietzsche percorreu para chegar a determinado conceito ou obra. No entender desses estudiosos, essa tarefa já está cumprida e o que importa é pensar questões e problemas pontuais dentro da Filosofia nietzschiana. É interessante notarmos que se chegou a essa escola depois de passarmos, nos anos 1960 e 1970, por outro "Nietzsche francês", o Nietzsche de Foucault, Deleuze e Derrida. Foi a época em que a Filosofia nietzschiana passou a ser utilizada como um instrumento de trabalho. O lema não era pensar a atualidade do texto nietzschiano, mas a atualidade através do texto nietzschiano. Foi a fase das interpretações, quando Nietzsche era usado para se pensar a realidade vigente. Nas últimas décadas, no entanto, Nietzsche voltou a ser um objeto de estudo por parte de comentadores. De caixa de ferramentas, se converteu em objeto de conhecimento filosófico.
FILOSOFIA - Você pode falar um pouco mais sobre essa tendência francesa que, nas décadas de 1960 e 1970, utilizou o pensamento nietzschiano como caixa de ferramentas para pensar a atualidade?Marton - Usar a Filosofia de Nietzsche como caixa de ferramentas é dizer que podemos interpretar por intermédio de Nietzsche - e interpretar não é o mesmo que comentar. Comentar é estudar o texto do filósofo e tentar compreender o que ele nos diz. Interpretar, por outro lado, é usar as ideias do pensador para refletir sobre questões efetivas. No caso da França dos anos 1960 e 1970, pensavam-se - pela Filosofia nietzschiana - os acontecimentos de caráter político, social e artístico daquele momento. Refletia-se, por exemplo, acerca das insurreições que estavam acontecendo nas penitenciárias - foi algo que Foucault fez muito.Pensava-se, também, sobre as comunidades antipsiquiátricas, os filmes de Jean-Luc Godard, a música de John Cage, a Pop art e os happenings - esse tipo de acontecimento artístico que surgiu naquela ocasião. É interessante a gente não deixar de perguntar por qual razão foi justamente nesse momento e por obra desses filósofos que Nietzsche foi apresentado como o filósofo da interpretação e dos intérpretes. E, aqui, eu trago a questão das redes de poder que está presente no meio acadêmico. Imagine você que surgem jovens pensadores que estão em busca de seu lugar ao Sol, em busca de um lugar no meio acadêmico.Para conquistar esse espaço eles precisavam se diferenciar das gerações anteriores. Nesse sentido, enquanto a geração anterior privilegiava o comentário e tentava estar o mais próximo possível da verdade do texto filosófico, esses jovens pensadores - com a intenção de ganhar um novo espaço na cena acadêmica - vão substituir o comentário pela atitude interpretativa. Essa substituição revela, de alguma maneira, as tensões de relações de forças que estão sempre presentes no meio acadêmico.FILOSOFIA - E essas tensões influenciam, de alguma forma, as interpretações teóricas?Marton - De uma maneira geral, eu tenho a impressão de que, quando pensamos nos filósofos e na História da Filosofia, pensamos de uma maneira muito angelical e inocente. Nós acreditamos que os grandes nomes da História da Filosofia se impõem, enquanto tal, como objeto de estudo. Como não deveríamos estudar um Kant, um Nietzsche? Vamos tomar como exemplo o Assim falava Zaratustra, de Nietzsche.Esse livro não aparece de imediato como um texto filosófico. Ele se converte a partir do momento em que, no meio acadêmico-filosófico, se manifesta um interesse por ele. O que eu quero dizer é que entre o texto que o filósofo escreve, no momento em que ele produz, e esse texto como objeto de conhecimento, há um grande percurso. O objeto de conhecimento é uma construção feita pelo leitor qualificado - um professor de Filosofia, um acadêmico. E este leitor está inscrito e inserido em conflituosas redes de poder. Na verdade, para estudar Nietzsche, foi preciso muita briga dentro da universidade.Foram necessários muitos embates dentro da academia para que o pensamento nietzschiano se convertesse num objeto de conhecimento. E é óbvio que a partir desses conflitos surgiram muitos "Nietzsches". E, nesse sentido, podemos dizer que essa proliferação de interpretações acerca da Filosofia nietzschiana não tem relação apenas com o interesse teórico. Sem dúvida, o âmbito teórico é uma determinante para o surgimento da diversidade interpretativa, mas o interesse de caráter político-universitário é outro fator muito decisivo. Como disse, o meio acadêmico é atravessado por redes de poder.Então, quando uma imagem do filósofo é construída, ela também é determinada por essa tensão de forças. Assim, cada imagem específica de Nietzsche diz respeito ao texto propriamente dito, mas também tem a ver com as circunstâncias políticoacadêmicas em que esse texto foi lido e trabalhado. Com isso, não quero dizer, no entanto, que não há leituras corretas e leituras erradas. Há leituras que fazem jus ao texto e procuram compreendê-lo e também há leituras que distorcem completamente o texto.
FILOSOFIA - Sobre essa nova onda de interesse acerca da Filosofia nietzschiana, a que pode ser atribuído esse fenômeno?ano do centenário da morte de Nietzsche, eu viajei muito e participei de congressos em várias partes do mundo, mas não vi, em parte alguma, tal interesse e uma profusão de textos destinados ao grande público como ocorreu aqui no Brasil. Então, penso que nós precisaríamos, para tratar desse tema, localizar a questão. Se, realmente, se trata do fenômeno Nietzsche no Brasil, aí eu veria algumas razões para esse interesse extraordinário. Eu acho que, em nosso país, tudo se passa como se houvesse uma perene demanda por algo novo, uma constante busca por algo que nos tirasse da mesmice e do marasmo. Nietzsche se apresenta como esse algo novo.O problema é que essa "novidade" já aparece domesticada. Fazem-se recortes e apresentam-se imagens que correspondem à expectativa que já se tem em relação ao próprio Nietzsche. Assim, o pensamento subvertedor de Nietzsche se torna muito apaziguado. No meu entender, essa domesticação se realiza, antes de qualquer coisa, quando se faz do filósofo um objeto de consumo. A partir daí passamos a ter um Nietzsche preparado e formatado para o consumo. Ele até pode aparecer com uma roupagem inovadora mais criativa - assim como os estilistas criam, a cada estação, roupagens mais inovadoras. Ou seja, ele chega ao grande público dentro de um contexto e de uma lógica determinada, a lógica do consumo - a lógica que impera em nossa sociedade. Então, a domesticação se dá por essa via.A partir dessa óptica, ele mesmo não pode mais servir como instrumento para se questionar a própria sociedade de consumo. E é uma pena, pois a Filosofia nietzschiana nos dá instrumentos para questionar a maneira de pensar, sentir, agir e viver. Como caixa de ferramenta, ela é de uma extrema riqueza, pois nos permite diagnosticar a época atual. O pensamento de Nietzsche possibilita diagnosticar os fenômenos e os acontecimentos, na medida em que esses acontecimentos são sintomas de determinadas condições de vida. Ele nos dá os elementos para refletirmos sobre o momento em que estamos vivendo e a maneira pela qual estamos vivendo. Mas, a partir do instante em que o filósofo se converte em objeto de consumo, ele passa a ser domesticado e perde seu caráter virulento. Perde o caráter que convida ao questionamento.
FILOSOFIA - A recepção brasileira de Nietzsche não se deu apenas pela via do consumo. E isso é o que você assinala em Nietzsche e a cena brasileira. Quais são as outras imagens de Nietzsche no Brasil?Marton - Nietzsche chega ao Brasil no início do século XX, portanto muito cedo. Chega por intermédio dos anarquistas espanhóis que enxergavam o filósofo como um pensador dos mais revolucionários e suas ideias tinham uma ressonância nos escritos literários da época. Um segundo grande momento é quando Nietzsche passa a ser apropriado e deturpado pela extrema direita. Em particular, falo dos integralistas que se reuniam em torno de Plínio Salgado. E um terceiro momento se dá na década de 1970, pelas leituras dos franceses.É o Nietzsche filósofo das interpretações de que falamos anteriormente. Por fim, há esse quarto momento, que ocorre por volta do ano 2000, quando Nietzsche vai aparecer e ganhar a mídia. É o Nietzsche domesticado como objeto de consumo. O resultado desse percurso nos trouxe um Nietzsche multifacetado e presente nas mais diferentes cenas. Se, por um lado, ele aparece como produto de consumo, por outro lado, sua presença também trouxe ressonâncias nas Artes Plásticas, na Literatura, nas Ciências Humanas e na Psicanálise.Na verdade, existe um Nietzsche brasileiro que está presente nos mais diferentes campos da nossa cultura. No que diz respeito à Literatura brasileira, vários autores - como Monteiro Lobato, Cecília Meireles e Clarice Lispector - se deixaram marcar pelo pensamento nietzschiano. Isso sem falar em Oswald e Mário de Andrade. Nas Artes Plásticas, a figura de eminência que foi influenciada por Nietzsche é Hélio Oiticica. No teatro, José Celso Martinez; na música popular, Jorge Mautner e Caetano Veloso. Isso sem falar na Sociologia. Florestan Fernandes, Sérgio Buarque e Otávio Velho. E daí por diante.FILOSOFIA - Já que Nietzsche está tão em voga no Brasil, é possível utilizar sua Filosofia como caixa de ferramenta para pensar a realidade brasileira?Marton - Eu tenho a impressão de que é legítimo utilizar os filósofos para pensar nosso momento histórico. É claro que alguns pensadores se prestam mais a isso do que outros. Eu acho que a Filosofia de Nietzsche, por exemplo, é muito útil nessa tarefa. Isso porque ele trabalha com valores que norteiam a conduta humana. A ideia de ressentimento, por exemplo, é extremamente útil para pensarmos a atual sociedade brasileira. De uma maneira geral, podemos dizer que o ressentimento se expressa "quando se quer, mas não pode". Aqueles que não podem reagir a determinado estímulo se ressentem. Ou seja, aquela capacidade de ação que não se torna efetiva, se volta contra o próprio indivíduo e se transforma em ressentimento. Hoje, nós vivemos numa sociedade em que - graças à publicidade, o marketing, etc. - os produtos são oferecidos como objeto de consumo acreditando-se que todos têm acesso a eles. Sabemos, no entanto, que isso não é verdadeiro. Há um abismo entre o desejo de se obter o tênis de tal marca e o poder aquisitivo que cada pessoa possui. Então, na medida em que o desejo Marton - Eu tenho a impressão de que é legítimo utilizar os filósofos para pensar nosso momento histórico. É claro que alguns pensadores se prestam mais a isso do que outros. Eu acho que a Filosofia de Nietzsche, por exemplo, é muito útil nessa tarefa. Isso porque ele trabalha com valores que norteiam a conduta humana.A ideia de ressentimento, por exemplo, é extremamente útil para pensarmos a atual sociedade brasileira. De uma maneira geral, podemos dizer que o ressentimento se expressa "quando se quer, mas não pode". Aqueles que não podem reagir a determinado estímulo se ressentem. Ou seja, aquela capacidade de ação que não se torna efetiva, se volta contra o próprio indivíduo e se transforma em ressentimento. Hoje, nós vivemos numa sociedade em que - graças à publicidade, o marketing, etc. - os produtos são oferecidos como objeto de consumo acreditando-se que todos têm acesso a eles. Sabemos, no entanto, que isso não é verdadeiro. Há um abismo entre o desejo de se obter o tênis de tal marca e o poder aquisitivo que cada pessoa possui. Então, na medida em que o desejo.
FILOSOFIA - Na mesma oportunidade em que você publicou essa nova coletânea sobre o "Nietzsche francês", também relançou Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos, publicado pela primeira vez em 1990, que, no meu entender, é uma interpretação de conjunto da obra do filósofo a partir da Cosmologia. Você ainda caminha nessa mesma direção? Pergunto isso porque boa parte dos comentadores brasileiros separa a Cosmologia de outros temas. Muitas vezes, o caráter hermenêutico do pensamento nietzschiano é levado mais em conta e se reflete, por exemplo, sobre o procedimento genealógico ou sobre perspectivismo de forma dissociada da Cosmologia.Marton - Como uma interpretação de conjunto, eu mantenho inteiramente o trabalho que realizei. O fato de eu ter trazido a ideia da Cosmologia para pensar a Filosofia nietzschiana foi bastante inovador para a época. Curiosamente, quando estava elaborando a tese de doutorado a partir da qual o livro foi publicado - eu tive acesso a um artigo de Müller-Lauter e, nesse momento, enfim, eu me senti acompanhada. Afirmo isso porque meu trabalho estava na contracorrente: fazer um estudo sistemático sobre a Filosofia nietzschiana, no momento em que Nietzsche chegava ao Brasil pela leitura dos franceses, era meio incompatível.Era um trabalho sistemático e de comentário numa época em que estava em voga usar Nietzsche como caixa de ferramentas. Quanto à segunda parte da sua pergunta, eu diria que, de uma forma geral, as pesquisas no Brasil são por demais pontuais e parciais. Aqui, se elege um determinado aspecto e passa-se a trabalhá-lo de uma forma deslocada de uma visão sistemática da obra do filósofo. Não se propõe nem uma nova interpretação de conjunto nem se parte de uma interpretação do conjunto anterior.FILOSOFIA - Você visita a Europa constantemente e está em contato com comentadores europeus. Quais são suas atividades na Europa? E quais as diferenças entre a pesquisa brasileira e a europeia?Marton - Eu faço parte do Grupo Internacional de Pesquisas Nietzschianas (GIRN). Esse grupo foi fundado por três colegas: o francês Patrick Wotling, o alemão Werner Stegmaier e o italiano Giuliano Campioni. Na verdade, a criação do GIRN veio responder à atual conjuntura europeia. A União Europeia tem feito esforços no sentido de agregar os diferentes grupos de pesquisas dos diferentes países. Ou, ao menos, agregar os ferentes pesquisadores. E, de certa forma, foi nesse contexto que surgiu o GIRN. E na medida em que o GEN sempre estabeleceu contato com colegas europeus - eu diria que é com europeus que eu tenho mais parcerias intelectuais, estabelecidas e consolidadas - eles me convidaram para integrar o GIRN desde sua fundação. Foi um grande reconhecimento pelo meu trabalho.Minhas idas à Europa estão relacionadas às atividades do GIRN. Isso significa participação em congresso, coorientação de tese e ciclos de conferência. Quanto ao Nietzsche europeu e o brasileiro, podemos apontar algumas diferenças cruciais. No momento, a pesquisa de Nietzsche na Europa se dá da seguinte maneira: os grandes estudos sistemáticos já foram feitos. Por exemplo, considera-se o trabalho de Müller-Lauter, em relação ao conceito de vontade de potência, determinante. Então, não é mais necessário se voltar a essa questão. A partir daí, é possível se tratar de problemas pontuais e questões localizadas. Eu diria que a pesquisa de Nietzsche, na França, na Alemanha e na Itália, é um estudo de caráter filológico. Eles estão trabalhando de forma muito precisa com alguns termos específicos e têm como objetivo principal tratar de questões localizadas sem levar em conta uma nova visão de conjunto da Filosofia nietzschiana.Eles partem do que já foi conquistado. No Brasil, as coisas se dão de outra forma. Eu tenho a impressão que isso acontece por conta da nossa própria realidade. O Brasil é o país em que tudo está sempre por acontecer, um país em que o passado e a memória contam pouco. Isso significa que, a cada momento, estamos começando do zero. Ou seja, a pesquisa já feita não é levada em conta. Com isso, o que ocorre aqui é uma profusão de trabalhos que começam do zero. Pesquisas que nada mais fazem do que arrombar portas abertas. Eu receio que sejam bem poucos os trabalhos que estejam contribuindo para levar adiante a pesquisa nietzschiana. É um enorme desperdício de energia, tempo e dinheiro mesmo. Eu diria que uma boa parte desses estudos é trabalho de divulgação e não, propriamente, pesquisa. Estamos vivendo uma enorme confusão conceitual entre formação e informação, entre pesquisa e divulgação. É muito mais fácil fazer um trabalho de divulgação do que um trabalho de pesquisa. Aqui, trabalhos de divulgação são apresentados como trabalhos de pesquisa.FILOSOFIA - Para encerrar, quais seriam as ressonâncias e influências que Nietzsche teria trazido à história posterior da Filosofia?Marton - Nietzsche foi extremamente determinante para o pensamento filosófico do século XX. Determinante de diferentes maneiras: se pensarmos, por exemplo, na escola de Frankfurt, podemos dizer que ela trabalha com o tripé Marx, Nietzsche e Freud. Podemos pensar, também, na Filosofia francesa. Aí vamos encontrar, como dissemos, todo pensamento rebelde da década de 1960 e 1970. Deleuze, Foucault e Derrida, que também trabalharam a partir de Nietzsche - seja com ele ou contra ele. Podemos pensar, também, nas aproximações que vêm sendo feitas, nos últimos 20 anos, entre o próprio Wittgenstein e Nietzsche. Isso sem falar de Freud e da Psicanálise, que é outro domínio, mas que, também, partiu de bases filosóficas. Isso para falarmos de forma muito rápida e resumida. Haveria muito mais a ser dito.

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