sábado, 22 de agosto de 2009

"René Descartes" .Por Marcos André Gleizer...

Poucas frases formuladas ao longo da história da Filosofia alcançaram a notoriedade do "Penso, logo existo". Enunciada por René Descartes (1596-1650) pela primeira vez em seu Discurso do método, publicado em 1637, essa frase curta e aparentemente simples inaugura uma das revoluções intelectuais mais radicais e importantes da história do pensamento ocidental. Com ela, um novo paradigma - a "Filosofia da consciência" ou "Filosofia da subjetividade", como este paradigma veio a ser denominado posteriormente - foi instaurado, introduzindo no cenário filosófico um conjunto de conceitos, temas e problemas que determinaram em grande parte os destinos da Filosofia moderna e contemporânea.Mas o que significa exatamente esta frase? Qual a função que ela desempenha no projeto filosófico de Descartes? De onde deriva a sua importância para o pensamento subsequente? Para responder a estas questões, é preciso relembrar inicialmente o objetivo deste projeto filosófico e o problema que ele procurou equacionar e solucionar. Logo no primeiro parágrafo de sua obra filosófica mais importante, as Meditações metafísicas (1641), Descartes enuncia, com toda a clareza e elegância que caracterizam seu estilo, o objetivo principal de seu projeto: "Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão malassegurados, não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências".O projeto consiste, portanto, em "estabelecer algo de firme e de constante nas ciências", ou seja, em buscar um fundamento seguro que garanta a verdade da Ciência, compreendida como uma explicação perfeitamente geral da natureza última das coisas e dotada de uma certeza absoluta. Mas de onde vem esta demanda por uma Ciência absolutamente certa? A busca da certeza é um dos ideais constitutivos da Filosofia ocidental, a ponto de alguns filósofos (como, por exemplo, Husserl) terem considerado que seu abandono levaria à própria destruição da cultura europeia. Isto não significa, no entanto, que a possibilidade de realizar este ideal não tenha sido seriamente questionada desde os primórdios da Filosofia por pensadores relativistas e céticos. O projeto de Descartes ilustra um dos esforços mais brilhantes do espírito humano para realizar este ideal, e a radicalidade com que ele se dedica a esta tarefa pode ser entendida como uma reação vigorosa ao ressurgimento do ceticismo, em particular, ao ceticismo pirrônico2, que ocorre durante a profunda crise espiritual e intelectual que abala a Europa nos séculos XVI e XVII.
Múltiplos são os fatores envolvidos na renovação do ceticismo durante este período, dentre os quais cabe mencionar: (1) a descoberta dos manuscritos de Sexto Empírico, os quais contêm "uma apresentação completa da posição dos céticos pirrônicos, com todas as suas armas dialéticas empregadas contra diversas teorias filosóficas".3O rico material contido nesses manuscritos alimenta a reflexão de pensadores como Montaigne e Gassendi, entre outros; (2) a ilustração, pelo movimento da Reforma, do problema cético do critério da verdade, aplicado, neste caso, ao âmbito religioso. Com efeito, ao questionar a autoridade milenar da igreja católica, Lutero rejeitou o critério da verdade religiosa por ela adotado, a saber, a autoridade do papa, substituindo-o por um critério baseado no que a consciência nos força a crer após um exame cuidadoso das Escrituras. Ora, este conflito entre critérios exemplifica uma clássica questão cética: como provar a validade de um critério de verdade sem incidir em uma regressão ao infinito, um raciocínio circular ou uma escolha arbitrária? (3) A destruição da visão aristotélico-ptolomaica do mundo. Com efeito, a revolução científica do século XVII é o resultado de sucessivas transformações que culminaram na substituição da concepção aristotélica do mundo como um cosmo fechado e hierarquizado por um universo infinito e homogêneo, da astronomia geocêntrica de Ptolomeu pelo modelo heliocêntrico de Copérnico; das explicações qualitativas e finalistas típicas da física aristotélica por modelos mecanicistas cujas explicações remetem a causas eficientes e a propriedades quantificáveis (tais como extensão, figura, grandeza e movimento). É compreensível que transformações científicas desta magnitude, que reduzem a pó uma cosmovisão milenar, suscitem a desconfiança acerca de nossa capacidade de conhecer a verdade.Ora, Descartes participa ativamente destas transformações. Não apenas ele formula inovações capitais no campo da Matemática, como a invenção da geometria algébrica, mas ele se engaja de forma resoluta na substituição do sistema aristotélico por um sistema de Filosofia natural mecanicista. Se como cientista ele pode se contentar com a maior eficácia explicativa deste novo modelo, como filósofo comprometido com a busca da certeza ele não pode deixar de enfrentar o problema epistemológico que esta novidade coloca. Afinal, o confronto entre dois modelos completamente diferentes de explicação científica do mundo coloca o mesmo tipo de problema cético que o conflito entre os critérios de verdade religiosa mencionado acima. Como encontrar e justificar um critério que garanta a verdade da nova Ciência?
Assim, a busca da certeza exige de Descartes o confronto com o desafio cético, e é neste contexto, como veremos, que a descoberta do Cogito adquire toda a sua importância. Ora, só uma investigação radical acerca dos primeiros princípios do conhecimento humano pode enfrentar este desafio e pretender fundamentar a Ciência. Esta investigação radical, como assinala a famosa metáfora cartesiana da árvore da Filosofia, cabe à Metafísica ou Filosofia primeira: "toda a Filosofia é como uma árvore cujas raízes são a Metafísica, o tronco é a Física, e os ramos que saem desse tronco são todas as outras ciências que se reduzem finalmente a três principais, a saber: a Medicina, a Mecânica e a Moral".Duas são as condições que devem satisfazer um primeiro princípio para garantir a solidez desta árvore: a primeira é que ele deve ser tão claro e evidente que o espírito humano não possa duvidar de sua verdade; e depois, ele deve ser conhecido sem o conhecimento de qualquer outra coisa, e o conhecimento de todas as outras coisas deve ser deduzido exclusivamente a partir dele. Como, no entanto, encontrar princípios que satisfaçam estas condições sem prejulgar do que está em questão?Para empreender esta tarefa, Descartes adota uma estratégia que consiste em voltar a arma do cético contra o próprio cético, duvidando "uma vez na vida" de todas as coisas para libertar-se definitivamente de toda dúvida. Trata-se, portanto, de mostrar como a descoberta da certeza nasce do exercício da própria dúvida. Para tal, Descartes elabora um método pelo qual procura desfazerse livremente de "todas as suas antigas opiniões". A liberdade envolvida na dúvida metódica atesta que esta não é um estado sofrido passivamente pelo sujeito, mas uma atividade por ele exercida, pois nós temos o poder de suspender a adesão a nossas opiniões até que possamos provar sua verdade. Esta suspensão, no entanto, não é arbitrária, mas motivada por razões para duvidar "muito fortes e maduramente consideradas".
Assim, o método propõe argumentos que atacam gradualmente a confiança ingênua nos princípios sobre os quais repousam todas as nossas opiniões, a saber: os sentidos, a imaginação e a razão. Ao minar a confiança no valor destas fontes de conhecimento, todas as opiniões que se apoiam sobre elas são ipso facto colocadas em questão. Dessa forma, a dúvida pode adquirir um alcance universal sem que seja preciso examinar o conteúdo particular de cada uma de nossas opiniões. Por sua vez, a dúvida é aplicada com radicalidade, pois o método prescreve que devemos tratar o que é apenas duvidoso como se fosse falso, e o que alguma vez nos enganou como se fosse sempre enganador. Só o exercício metódico desta desconfiança exagerada permite superar a força dos prejuízos decorrente do hábito que adquirimos de acreditar de forma acrítica nas opiniões herdadas.Quais são, em grandes linhas, os argumentos céticos que Descartes formula com máximo rigor em sua Primeira meditação? O primeiro argumento, conhecido como argumento do erro dos sentidos, ataca a validade da percepção sensível das propriedades dos corpos. Todos nós constatamos que os sentidos nos enganam às vezes. Afinal, quem nunca percebeu que os objetos vistos ao longe parecem menores do que quando vistos de perto? Assim, na medida em que o método determina que "não é prudente se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez", cabe suspender a crença na validade de todas as informações sensíveis acerca destas propriedades. O segundo argumento, conhecido como argumento do sonho, ataca algo que escapa ao primeiro argumento, a saber: a validade da percepção da própria existência dos corpos. Todos nós sonhamos e em nossos sonhos muitas vezes imaginamos objetos e situações de forma tão viva e intensa quanto na vigília. Como, então, podemos saber se estamos sonhando ou se estamos acordados? Como posso ter certeza absoluta de que não estou apenas sonhando que escrevo este texto?Ora, se não há nenhum indício ou critério intrínseco que permita distinguir a percepção autêntica da percepção ilusória, então o método determina que devemos supor que estamos sempre sonhando e que todas as percepções de coisas corporais "não passam de falsas ilusões".Mas isto significa que, até que se prove o contrário, a existência do mundo exterior - e, portanto, de meu próprio corpo - está colocada em questão. Por fim, o terceiro argumento, formulado mediante a hipótese do Deus Enganador e reforçado pela ficção do Gênio Maligno, atinge o que escapa dos argumentos anteriores, a saber: a validade dos conhecimentos racionais exemplificados pela Matemática. As verdades da Matemática independem da existência do mundo exterior, pois elas dizem respeito a propriedades necessárias de objetos ideais, ou seja, de essências eternas e imutáveis. Assim, quer eu esteja dormindo quer acordado, dois mais dois é necessariamente igual a quatro. No entanto, talvez eu tenha sido criado por um Deus onipotente que, em virtude de sua onipotência, pode me enganar sistematicamente ao me fazer crer na verdade das proposições necessárias. Talvez estas proposições nada mais sejam que um reflexo de princípios lógicos que regem apenas minha mente, sem possuírem nenhum alcance ontológico. Com esta hipótese, a dúvida atinge seu grau supremo, pois ataca a validade objetiva das próprias ideias claras e distintas da razão.
As graves dificuldades levantadas pelas dúvidas parecem dar inteira razão ao cético e destruir qualquer esperança de encontrarmos "alguma coisa que seja certa e indubitável". No entanto, é a própria reflexão sobre esta dúvida universal que produz uma reviravolta decisiva e nos conduz à descoberta da primeira certeza. Pois se todas as minhas ideias não passam de falsas ilusões, é certo que eu penso nessas falsas ilusões, e durante todo o tempo em que eu penso nelas, é certo que eu existo pensando. É esta primeira certeza que Descartes expressa no Discurso do método e nos Princípios da Filosofia pelo famoso "Penso, logo existo".De onde vem a força desta proposição? Para duvidar da verdade das minhas ideias é preciso que eu exerça um ato de pensamento, pois duvidar é um modo de pensar. Porém, não é possível que eu exerça qualquer ato de pensamento sem que eu saiba imediatamente que exerço este ato, pois este saber imediato que acompanha a realização dos meus atos mentais é o que define a natureza do pensamento como consciência. Eis o que torna o Eu penso indubitável e o distingue de outros enunciados como, por exemplo, Eu ando. Não apenas eu posso andar sem saber que ando (basta que eu seja sonâmbulo), mas eu posso muito bem duvidar que eu esteja de fato andando (pode ser que eu esteja apenas sonhando que ando). Porém, eu não posso pensar que ando sem ser consciente deste pensamento. Tampouco é possível que eu não saiba imediatamente que eu existo como sujeito que exerce este pensamento. Afinal, como "o nada não tem propriedades", é impossível que os atos de consciência não sejam atos de um sujeito e que este não seja consciente de ser o sujeito que exerce estes atos. Eis a indubitabilidade de minha existência como sujeito pensante. Assim, se a dúvida põe em questão a verdade dos meus conteúdos de consciência, jamais ela atinge a certeza indubitável de que eu existo pensando nestes conteúdos. A reflexão sobre as dúvidas céticas revela, portanto, a existência indubitável de algo que delas escapa necessariamente por ser sua condição de possibilidade, a saber: a existência do sujeito pensante.Com a descoberta do Cogito, a primeira condição de um verdadeiro princípio é satisfeita, pois a certeza da existência do sujeito pensante resiste a qualquer razão de duvidar. A dúvida encontra seu limite. No entanto, esta primeira certeza não elimina as razões de duvidar, pois estas continuam atacando a validade dos conteúdos de nossas crenças acerca da realidade de qualquer objeto "fora do pensamento". Enquanto a hipótese do Deus Enganador e a dúvida do sonho não forem eliminadas, a existência de qualquer outra coisa - seja de Deus, de outras mentes ou dos corpos - continua em questão. Por isso, enquanto a existência dos corpos é incerta a única coisa que se pode afirmar com certeza acerca do sujeito é que ele existe apenas como uma coisa pensante. Assim, com a descoberta do Cogito, Descartes introduz na Filosofia o primado epistemológico da consciência de si sobre o conhecimento de objetos exteriores.
A força do Cogito se manifesta em sua resistência sistemática aos ataques da dúvida. Sua fraqueza, em que a dúvida não é por ele destruída. Por isso, esta primeira certeza não fornece ainda uma refutação do ceticismo, mas apenas um primeiro princípio, um "ponto arquimediano", como afirma Descartes, a partir do qual é preciso avançar. Permanecer neste ponto não proporcionaria o fundamento último da Ciência e condenaria o sujeito a uma posição solipsista, ou seja, o aprisionaria na solidão metafísica de sua consciência individual. Portanto, para superar esta situação é preciso refutar as razões de duvidar partindo do "porto seguro" oferecido pelo Cogito. Só a investigação dos dados imediatos e indubitáveis da consciência permite superar seu isolamento e encontrar o fundamento da Ciência.Mostrar como a análise dos dados da consciência permite superar o solipsismo e refutar o ceticismo equivale a mostrar como o Cogito satisfaz a segunda condição exigida de um verdadeiro princípio, a saber: fornecer o primeiro elo de uma rigorosa cadeia de razões. Assim, partindo do Cogito, Descartes deduz uma série de teses imprescindíveis para a realização de seu projeto.Não cabe aqui percorrermos esta cadeia dedutiva, mas apenas mencionar brevemente suas principais etapas e as questões que elas colocam:(1) A reflexão sobre a primeira certeza permite encontrar o critério de verdade, segundo o qual "todas as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras". No entanto, como o Cogito não destrói a razão metafísica de duvidar, mas apenas lhe resiste, ele não é capaz de validar este critério. Para tal, é preciso suprimir a hipótese do Deus Enganador, o que implica provar a existência do Deus Veraz.(2) Descartes propõe três provas da existência de Deus, todas dependentes da análise da ideia de Deus. A noção de ideia designa em Descartes o modo do pensamento que tem a função de representar objetos à consciência, mesmo que os objetos pensados possam não existir fora da consciência. A peculiaridade da ideia de Deus (representado como o ser infinito e perfeito) consiste em ser a única que obriga o sujeito a inferir a necessária existência de seu objeto fora do pensamento. As provas da existência de Deus e de sua veracidade não têm, portanto, uma função apologética. Trata-se de uma etapa indispensável para superar o solipsismo (pois se Deus existe, eu não estou só no mundo) e refutar o ceticismo (pois se Deus existe e é veraz, ele garante a verdade de minhas ideias claras e distintas). Só a passagem pelo Absoluto permite fundar a correspondência entre nossas representações e uma realidade que não foi criada por nós.(3) Com o critério de verdade legitimado, Descartes restabelece a validade do conhecimento matemático e prova a tese dualista da distinção substancial da alma e do corpo. Por fim, as teses já demonstradas, associadas à análise dos dados indubitáveis da consciência sensível (a consciência de sentir é tão indubitável quanto a consciência de representar qualquer objeto), fornecem as premissas para a prova da existência do mundo exterior (legitimando, assim, a nova Física mecânica) e a da união da alma e do corpo (estabelecendo, enfim, que o homem não é apenas uma coisa pensante).Essas teses, suas provas e as questões que elas envolvem suscitaram inúmeras objeções desde a sua formulação. No entanto, o que importa ressaltar é que a busca do fundamento indubitável da Ciência conduziu Descartes à descoberta do primado da consciência, inaugurando um novo ponto de partida para a investigação filosófica. A frase "Penso, logo existo" simboliza o novo paradigma com que Descartes legou à posteridade grande parte das questões que enfrentamos ainda hoje. Afinal, nada revela mais claramente a presença atual deste legado do que o anticartesianismo dominante na Filosofia contemporânea.

Um comentário:

  1. Gostei do teu texto! Muito bacana!

    Escrevi um sobre Descartes, descontraído e informal.

    Legal a tua postagem,! deem também uma olha na nossa em http://nerdwiki.com/2014/01/12/o-discurso-do-metodo-rene-descartes/ Obrigado.

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