sexta-feira, 5 de junho de 2009

Philip J. Davis

Philip J. Davis
http://www.dam.brown.edu/people/facultypage.davis.html
EXISTEM na literatura paracientífica duas obras ímpares, que fogem a todos os cânones e desafiam todas as tentativas de classificação. Obras que, não sendo de divulgação científica, fazem brilhar como poucas o fascínio da ciência; que, não sendo técnicas, explicam com limpidez cristalina sofisticados conceitos científicos; que, não sendo romances, se devoram com enorme avidez e entusiasmo, fazendo-nos lamentar ter chegado ao fim; que, não sendo poéticas, nos deixam uma sensação de ter contemplado níveis de beleza antes insuspeitados. Obras que, por tudo isto, são ícones da cultura científica deste final de século. Uma delas é Gödel, Escher, Bach, de Douglas Hofstadter, ainda por editar em Portugal. A outra é a Experiência Matemática - que, ao fim de 15 anos e de um percurso atribulado, vê finalmente - e felizmente – a luz do dia entre nós.Escrever sobre uma ciência como a Matemática um livro global que não se resuma às trivialidades mais ou menos gerais e consensuais parece não apenas uma tarefa ciclópica como demasiado ambiciosa - mesmo desesperada. Falamos da mais antiga das ciências, com mais de 5000 anos de existência, centenas de ramificações e especializações, sobre a qual são publicados anualmente milhares de livros e artigos em milhares de revistas mais ou menos especializadas; de uma ciência em que se alimentaram, e continuam a alimentar, extensas e profundas polémicas sobre a sua verdadeira natureza, a sua filosofia, os seus métodos, o alcance e os limites da sua aplicabilidade a outras formas de conhecimento científico: de uma ciência que tanta tinta faz correr, sempre que, como agora, se tentam reformas do ensino e se refazem currículos- para uns disciplina básica para modelar o espírito de rigor das crianças, para outros mero instrumento de avaliação selectiva com laivos de elitismo, qual antigo latim.Escrever uma obra desta envergadura pareceria, de facto, uma tarefa ciclópica, demasiado ambiciosa e mesmo desesperada - se não tivesse sido já realizada. A Experiência Matemática é a todos os títulos uma obra-prima - um «clássico instantâneo», na expressão do reputado «New Scientist». É uma discussão simultaneamente acessível e profunda, honesta e brilhante, de todas estas faces da Matemática. Esta obra ilumina todos os aspectos, dos mais claros aos mais bizarros, que a caracterizam como uma das mais belas e frutuosas construções do espírito humana. Como uma instituição - como se organizam e trabalham os matemáticos, porque acham que os hiperquadrados não-riemannianos são o centro da sua vida, como se preparam, o que escrevem, onde e quanto. Como forma de cultura - o papel do indivíduo e os factores sociais que influenciam o seu desenvolvimento; à filosofia da descoberta matemática - desde as clássicas teorias formalistas, construtivistas e logicistas à bem recente teoria criticista ou falibilista proposta por Imre Lakatos, discípulo de Popper e autor daquela que é talvez a mais séria tentativa contemporânea de entender o mecanismo subjacente à descoberta em Matemática. Como as relações sempre polémicas dos seus aspectos estéticos e lúdicos (segundo o famoso matemático inglês G.Hardy, «A Matemática ou é bela ou não existe»). Como até as sempre actuais discussões sobre o alcance e os limites da aplicabilidade da Matemática às outras formas de conhecimento.Não se pense contudo que, pelo facto de tocarem todos esses aspectos, o livro se toma superficial na sua abordagem. Muito pelo contrário: embora de forma sintética, revela exemplarmente como essas discussões permanecem abertas e bem vivas nos nossos dias, identificando em cada uma os aspectos e questões fulcrais, documentando muitas vezes com depoimentos polémicos, por vezes mesmo contraditórios, a diversidade de soluções que são propostas.A Experiência Matemática é também a experiência da «crise clássica da sala de aula» Com o exemplo de um belo teorema de topologia, o teorema das duas panquecas explora-se um efeito clássico do ensino da Matemática: num ponto da demonstração surge a crise. «Porquê? Não compreendo! Pode repetir? Estou confuso!», reacções dos alunos. «Vá lá, deixem-me prosseguir. Vão ver que funciona!», reacção do professor. Esta experiência é quase diária no ensino da Matemática. Os autores mostram a sua relação com a arte da descoberta de Pólya, que dissecou em obras clássicas (How To Solve It é a mais famosa) a compreensão e resolução de problemas; e com a heurística de Lakatos, que consiste na descoberta e compreensão «maiêuticas». A discussão de conjecturas e refutações sobre um problema de teoria de números, ao alcance de qualquer estudante do secundário, é o exemplo perfeito daquilo que é «fazer matemática».A Experiência Matemática é ainda a Matemática propriamente dita. Nunca pensámos ver expostas a este nível, com tanta transparência e elegância e ao mesmo tempo rigor, as ideias fundamentais do Teorema dos números primos, de Fermat a Hadamard, passando por Riemann e Gauss, e dando mesmo argumentos heurísticos para a veracidade do «Teorema dos primos gémeos» (passe o paradoxo!); ou das geometrias não euclidianas; ou da teoria de conjuntos não-cantoriana explicando as suas relações com a hipótese do contínuo, o teorema de Gödel e a teoria dos modelos; ou a análise não «standard», reabilitação matemática dos fantasmas de Zenão e do bispo Berkeley; ou a análise de Fourier, desde a sua pré-história com Euler e d'Alembert até aos espaços de funções generalizadas, onde continua a investigação nos nossos dias.O que sobressai desta maravilhosa síntese é o contrariar do lugar-comum lugar mesmo demasiado comum, da visão desta ciência como monolítica e hermética, quase iniciática, em favor de mostrar a enorme diversidade e abertura que há entre os que a praticam, quer quanto ao modo de «fazer matemática», como aos métodos utilizados para «produzir resultados e teorias» e mesmo quanto aos aspectos fundamentais da sua natureza filosófica. Afinal, no mar da Matemática desaguam milhares e milhares de rios, todos contribuindo com as suas águas para que este nunca venha a ser um mar morto. Esta obra faz-nos, a todos, uma proposta que não podemos recusar: um convite para irmos à praia, conhecer este mar - que apenas sabemos vagamente existir onde a terra acaba - em todo o seu fascínio e esplendor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário