quinta-feira, 28 de maio de 2009

w. g. sebald

Guardadas as devidas proporções, é possível afirmar que a morte de W.G. Sebald foi a mais grave jovem perda para a literatura desde Franz Kafka. Kafka morreu aos 40 anos, em 1924. Sebald, é preciso dizer, faleceu mais velho, aos 57 anos, após sofrer uma parada cardíaca ao ser atingido por um carro enquanto dirigia em uma rua de Norwich, Inglaterra (sua filha também estava no carro e sobreviveu). Quase um século depois, no entanto, com todo o avanço da medicina, é mais trágico e incomum morrer aos 57 anos em 2001 do que aos 40 em 1924. E o que é mais doloroso: além da pouca idade, o escritor e professor alemão, nascido em 1944, deixou um legado pouco volumoso, composto de quatro volumes de ficção, além de ensaios e poemas. Um conjunto de difícil definição, de enquadramento mais complicado ainda em classificações, estilos ou movimentos literários.O que são os livros de Sebald? Romances? Contos? Ensaios? Autobiografia? Diários? Guias de viagem? Atestados antropológicos? Artigos acadêmicos? O termo mais próximo do correto talvez seja “narrativas” – e essas narrativas incluem um pouco de cada um dos outros gêneros. Sua morte é uma lástima tão grande justamente porque ele vinha redefinindo o conceito de gênero, demolindo a todos e reconstruindo-os à sua maneira enviesada. Tendo começado a lançar ficção com quase 50 anos, já maduro e com controle absoluto sobre a sua escrita, Sebald não abriu margem ao erro. Basta folhear os três dos quatro livros editados no Brasil, “Os emigrantes”, “Os anéis de Saturno” (ambos pela Record) e o recém-lançado “Austerlitz” (Companhia das Letras), publicado poucos meses antes da morte do autor. São três jóias que se completam sem se repetirem. O estilo próprio do autor está nos três, sem virar caricatura, sem cair na auto-indulgência.“Os emigrantes” reúne quatro novelas curtas, todas sobre judeus que precisaram, em algum momento, deixar sua terra natal e viver à margem em um local distante. “Os anéis de Saturno” começa com uma caminhada do narrador por um condado inglês e se desdobra em dezenas de assuntos explorados às minúcias (a colonização da Inglaterra em países europeus, a “história natural do arenque”, a “origem e difusão do cultivo da seda”, o sensacional conto de Jorge Luis Borges, “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”). “Austerlitz”, formalmente, é o que mais se aproxima da estrutura tradicional de um romance, com a sua seqüência mais ou menos coerente de enredo e desenvolvimento. Como em “Os anéis de Saturno”, há desdobramentos para uma infinidade de temas, porém de maneira que não percam a ligação com o fio narrativo principal.
A memória e a passagem do tempo são as preocupações centrais de Sebald. Para ele, o tempo é uma entidade misteriosa, de vida própria e arisca, que requer questionamento. Em uma passagem de “Os emigrantes”, o narrador escreve que “o tempo é um padrão pouco confiável, pois ele não passa de rumores da alma. Não existe nem um passado nem um futuro”. “Austerlitz” retoma esse debate sobre a ineficácia do tempo, um conceito que, diferente de um rio, não possui margens delimitáveis. Em “Os emigrantes”, o pintor Max Aurach deixa a poeira se acumular no seu ateliê por acreditar que ela está mais próxima de si que o ar, elemento intangível como o tempo. Em “Austerlitz”, o personagem-título orgulha-se de nunca ter usado relógios. Não é que os personagens de Sebald se recusem a deixar o tempo passar; eles o congelam para que possam, com o espírito acadêmico e curioso que herdaram de seu criador, radiografar o passado. Não como velhos que olham para os erros da juventude – Sebald é bom demais para cair em situações simples assim; na verdade ocorre o inverso: mais do que revisar suas atitudes, eles aproveitam os homens envelhecidos que são, de sucessos e fracassos, para explicar os erros e acertos que cometeram. Dão significado aos fatos biográficos do passado através do futuro. Austerlitz reflete que “nada do que nos conta a história seja verdade, o acontecido ainda não aconteceu, mas só acontece no tempo em que pensamos nele”.
Esse homem, Jacques Austerlitz, professor de História da Arquitetura, é encontrado por acaso na estação ferroviária de Antuérpia, Bélgica, pelo narrador não-nomeado. Começa ali uma relação curiosa, não de amizade, mas de dependência intelectual, que perdura esporadicamente por anos. Austerlitz precisa contar sua história a alguém: o narrador é seu interlocutor e biógrafo imaginário. Penetramos uma epopéia de idas e vindas na vida desse homem criado no País de Gales por um rígido pastor calvinista, mais tarde estudante em Paris, professor conceituado em Londres (estudioso do “estilo arquitetônico da era capitalista”), um errante por paixão, viajante que registra, com sua câmera fotográfica, cenários em frangalhos, localidades esquecidas ou ignoradas. Ainda na adolescência, Austerlitz descobre que foi adotado. Pesquisa seu passado e descobre ser filho de refugiados judeus da República Tcheca, que o colocaram a caminho da Grã-Bretanha para que se salvasse dos nazistas.
Durante essa busca pelas raízes, o professor se depara com uma Europa em cinzas (ainda que o continente insista em não admitir isso), de cidades perdidas e dizimadas, de pessoas que viram tudo a sua volta desabar – dignidade, unidade familiar, a esperança de que alguma moralidade é possível. É emblemática a passagem em que Austerlitz relata o dia em que foram encontrados em Londres, onde hoje se encontram uma estação de metrô e um hotel de luxo, os cadáveres de dezenas de pessoas, internos de um sanatório que existira ali décadas antes. Varremos os mortos para baixo do tapete, seguimos fazendo de conta que o passado pertence ao passado e continuamos vivendo de maneira que o presente, no futuro, seja também um passado esquecido. Assim como os edifícios superdimensionados que, como Austerlitz diz, “lançam previamente a sombra de sua própria destruição e são concebidos desde o início em vista de sua posterior existência em ruínas”. Procuramos conviver hipocritamente com essas ruínas. Sebald, brilhante, escava a podridão e joga na cara do leitor.Não joga, todavia, de maneira cáustica e biliosa, como o faria seu quase vizinho, o austríaco Thomas Bernhard. Sebald é plácido, paciente, contemplativo. Suas histórias dão origem a relatos secundários (assim como as de Bernhard), e o autor não tem pressa em passar de um acontecimento a outro, preocupado que está em esmiuçar os assuntos mais diversos e tirar tudo deles, desde a arquitetura de estações e fortificações, passando por astronomia e exotismos como o papagaio-cinzento africano. Escreve blocos únicos de parágrafos, sentenças longas (uma delas, no trecho sobre um campo de concentração, dura cerca de dez páginas), oníricas, pictórias e descritivas. Há, inclusive, uma frase do narrador sobre Austerlitz que sintetiza bem o poder impressionante da prosa “falada”, declaratória do alemão: “Desde o início me surpreendeu o modo como Austerlitz dava corpo a suas idéias no próprio ato de falar, como era capaz de desdobrar as frases mais harmoniosas a partir daquilo que lhe ocorria no momento, e como a transmissão de seu conhecimento através da fala constituía para ele a gradual aproximação a uma espécie de metafísica da história, na qual os fatos relembrados tornavam novamente à vida”.“Austerlitz” é uma pequena obra-prima, talvez o mais permanente trabalho literário do século até agora. Artesão de vocação ensaística, espírito romanesco e rigor historicista e antropológico, W.G. Sebald foi, como Jacques Austerlitz, um arquiteto: arquiteto da alma da civilização do século 20. Como seu personagem, parecia acreditar que todos nós temos um compromisso para cumprir no passado.

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