A memória e a passagem do tempo são as preocupações centrais de Sebald. Para ele, o tempo é uma entidade misteriosa, de vida própria e arisca, que requer questionamento. Em uma passagem de “Os emigrantes”, o narrador escreve que “o tempo é um padrão pouco confiável, pois ele não passa de rumores da alma. Não existe nem um passado nem um futuro”. “Austerlitz” retoma esse debate sobre a ineficácia do tempo, um conceito que, diferente de um rio, não possui margens delimitáveis. Em “Os emigrantes”, o pintor Max Aurach deixa a poeira se acumular no seu ateliê por acreditar que ela está mais próxima de si que o ar, elemento intangível como o tempo. Em “Austerlitz”, o personagem-título orgulha-se de nunca ter usado relógios. Não é que os personagens de Sebald se recusem a deixar o tempo passar; eles o congelam para que possam, com o espírito acadêmico e curioso que herdaram de seu criador, radiografar o passado. Não como velhos que olham para os erros da juventude – Sebald é bom demais para cair em situações simples assim; na verdade ocorre o inverso: mais do que revisar suas atitudes, eles aproveitam os homens envelhecidos que são, de sucessos e fracassos, para explicar os erros e acertos que cometeram. Dão significado aos fatos biográficos do passado através do futuro. Austerlitz reflete que “nada do que nos conta a história seja verdade, o acontecido ainda não aconteceu, mas só acontece no tempo em que pensamos nele”.
Esse homem, Jacques Austerlitz, professor de História da Arquitetura, é encontrado por acaso na estação ferroviária de Antuérpia, Bélgica, pelo narrador não-nomeado. Começa ali uma relação curiosa, não de amizade, mas de dependência intelectual, que perdura esporadicamente por anos. Austerlitz precisa contar sua história a alguém: o narrador é seu interlocutor e biógrafo imaginário. Penetramos uma epopéia de idas e vindas na vida desse homem criado no País de Gales por um rígido pastor calvinista, mais tarde estudante em Paris, professor conceituado em Londres (estudioso do “estilo arquitetônico da era capitalista”), um errante por paixão, viajante que registra, com sua câmera fotográfica, cenários em frangalhos, localidades esquecidas ou ignoradas. Ainda na adolescência, Austerlitz descobre que foi adotado. Pesquisa seu passado e descobre ser filho de refugiados judeus da República Tcheca, que o colocaram a caminho da Grã-Bretanha para que se salvasse dos nazistas.
Esse homem, Jacques Austerlitz, professor de História da Arquitetura, é encontrado por acaso na estação ferroviária de Antuérpia, Bélgica, pelo narrador não-nomeado. Começa ali uma relação curiosa, não de amizade, mas de dependência intelectual, que perdura esporadicamente por anos. Austerlitz precisa contar sua história a alguém: o narrador é seu interlocutor e biógrafo imaginário. Penetramos uma epopéia de idas e vindas na vida desse homem criado no País de Gales por um rígido pastor calvinista, mais tarde estudante em Paris, professor conceituado em Londres (estudioso do “estilo arquitetônico da era capitalista”), um errante por paixão, viajante que registra, com sua câmera fotográfica, cenários em frangalhos, localidades esquecidas ou ignoradas. Ainda na adolescência, Austerlitz descobre que foi adotado. Pesquisa seu passado e descobre ser filho de refugiados judeus da República Tcheca, que o colocaram a caminho da Grã-Bretanha para que se salvasse dos nazistas.
Durante essa busca pelas raízes, o professor se depara com uma Europa em cinzas (ainda que o continente insista em não admitir isso), de cidades perdidas e dizimadas, de pessoas que viram tudo a sua volta desabar – dignidade, unidade familiar, a esperança de que alguma moralidade é possível. É emblemática a passagem em que Austerlitz relata o dia em que foram encontrados em Londres, onde hoje se encontram uma estação de metrô e um hotel de luxo, os cadáveres de dezenas de pessoas, internos de um sanatório que existira ali décadas antes. Varremos os mortos para baixo do tapete, seguimos fazendo de conta que o passado pertence ao passado e continuamos vivendo de maneira que o presente, no futuro, seja também um passado esquecido. Assim como os edifícios superdimensionados que, como Austerlitz diz, “lançam previamente a sombra de sua própria destruição e são concebidos desde o início em vista de sua posterior existência em ruínas”. Procuramos conviver hipocritamente com essas ruínas. Sebald, brilhante, escava a podridão e joga na cara do leitor.Não joga, todavia, de maneira cáustica e biliosa, como o faria seu quase vizinho, o austríaco Thomas Bernhard. Sebald é plácido, paciente, contemplativo. Suas histórias dão origem a relatos secundários (assim como as de Bernhard), e o autor não tem pressa em passar de um acontecimento a outro, preocupado que está em esmiuçar os assuntos mais diversos e tirar tudo deles, desde a arquitetura de estações e fortificações, passando por astronomia e exotismos como o papagaio-cinzento africano. Escreve blocos únicos de parágrafos, sentenças longas (uma delas, no trecho sobre um campo de concentração, dura cerca de dez páginas), oníricas, pictórias e descritivas. Há, inclusive, uma frase do narrador sobre Austerlitz que sintetiza bem o poder impressionante da prosa “falada”, declaratória do alemão: “Desde o início me surpreendeu o modo como Austerlitz dava corpo a suas idéias no próprio ato de falar, como era capaz de desdobrar as frases mais harmoniosas a partir daquilo que lhe ocorria no momento, e como a transmissão de seu conhecimento através da fala constituía para ele a gradual aproximação a uma espécie de metafísica da história, na qual os fatos relembrados tornavam novamente à vida”.“Austerlitz” é uma pequena obra-prima, talvez o mais permanente trabalho literário do século até agora. Artesão de vocação ensaística, espírito romanesco e rigor historicista e antropológico, W.G. Sebald foi, como Jacques Austerlitz, um arquiteto: arquiteto da alma da civilização do século 20. Como seu personagem, parecia acreditar que todos nós temos um compromisso para cumprir no passado.
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