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Depois do Discurso do Método, de Descartes, tem-se como certo que o sujeito é, por natureza, capaz de aceder à verdade, sem conversão prévia.Pouco a pouco se revela uma face ignorada do pensamento de Michel Foucault: o que ensinou no Collège de France. A partir de agora, o leitor pode mergulhar em seus cursos do período universitário de 1981-1982: A hermenêutica do sujeito. As aulas reunidas neste livro visam a reconstituir a história, na cultura antiga, da relação entre a verdade e o sujeito; movem-se em torno da noção da “prática de si”.Passam-se mil anos entre o exercício filosófico platônico e o desenvolvimento do ascetismo cristão: milênio percorrido nesse livro. Ao longo desses séculos, a exigência filosófica e a exigência espiritual foram enlaçadas. Se a filosofia é a interrogação sobre os caminhos que permitem ao sujeito ter acesso à verdade, a espiritualidade, por sua vez, é a “a busca, a prática, a experiência pelas quais o sujeito opera sobre si mesmo as transformações necessárias para ter acesso à verdade”. A exigência da preocupação de si, mobilizando as práticas de si, é a expressão dessa natureza espiritual da filosofia.
Amor e ascese esboçam as duas grandes formas históricas do trabalho de arrancar o sujeito daquilo que ele é, para torná-lo capaz de verdade.O “momento cartesiano” porá fim, na filosofia, a essa preocupação de si, iniciando a modernidade. Depois do Discurso do Método, tem-se como certo que o sujeito é, por natureza, capaz de aceder à verdade, sem conversão prévia: basta aplicar bem o método. É a tradicional exigência espiritual de transformação do sujeito que Descartes expulsa definitivamente do campo filosófico e científico.A espiritualidade implica a transformação do sujeito. Amor (desde Platão) e ascese (de Pitágoras aos últimos estóicos) esboçam as duas grandes formas históricas desse trabalho de arrancar o sujeito daquilo que ele é para torná-lo capaz de verdade. Michel Foucault estabelece um primeiro momento, “socrático-platônico”, representado por Alcebíades. Sócrates ensina ao jovem Alcebíades o seguinte: para aspirar a governar a cidade, é necessário aprender a governar-se a si mesmo. A preocupação de si implica um terceiro: o mestre, seja ele o maiêutico (Sócrates), o fundador da escola (Epicuro), o modelo (Epiteto) ou o correspondente (Sêneca). Com o desaparecimento da preocupação de si, do caráter espiritual da filosofia, desaparece igualmente a necessidade de um terceiro-mestre: Descartes medita sozinho (“cogito, ergo sum”), precedendo, nessa solidão da razão filosofante, Espinosa, Leibniz, Kant.
A prática de si identifica-se com o cuidado da alma: a filosofia é paralela à medicina, sendo o filósofo quem dispensa cuidados à almaO segundo momento transporta-nos ao início da era cristã. A preocupação de si tornou-se uma obrigação de toda a existência. Os epicuristas e os estóicos afirmam que é necessário filosofar durante a vida inteira por meio indireto de práticas de si codificadas em exercícios precisos. A prática de si identifica-se com o cuidado da alma: a filosofia é paralela à medicina, sendo o filósofo – para falar com Epiteto – aquele que dispensa cuidados à alma. Esse momento desenvolve novas tecnologias de si. Primeiro: a parrésia, a franqueza no discurso, o dizer-verdadeiro. E em seguida: a salvação. A filosofia se baseia na salvação; mas esta palavra não corresponde ao que será a salvação cristã. A salvação é uma prática de si pela qual o sujeito salva sua própria vida (enquanto a salvação cristã projeta o sujeito no além). Enfim: a meditação. Longe de ser um jogo moderno efetuado pelo sujeito com seu pensamento, a meditação antiga é o exercício espiritual que transforma o sujeito. Essas formas constituem a ascese. A ascese não é, como no cristianismo, uma renúncia; corresponde, antes, a uma relação plena, acabada, com o si, sendo a idéia da velhice, segundo Sêneca, uma amostra disso. Através da ascese, o dizer-verdadeiro, a parrésia, pode tornar-se o modo de ser do sujeito. Assim, a finalidade da ascese é, antes do cristianismo, quem transformará e, antes da filosofia moderna, quem abandonará a “subjetivação do discurso verdadeiro”.Esse último Foucault é o mais surpreendente e o mais inesperado: é o de uma prodigiosa mutação em seu pensamento. É um pensamento trabalhando, que se entrega em sua parrésia. Nele, Foucault se desfaz de sua pele moderna de filósofo não espiritual, aproximando-se dos filósofos da Antigüidade, dos quais nos fala como se seu estudo já fosse uma prática de si. Ao longo dessa hermenêutica do sujeito, Michel Foucault afasta-se das margens da filosofia moderna para se tornar um filósofo espiritual.
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