sábado, 2 de maio de 2009

o novo incosciente por lionel naccache

As neurociências cognitivas exploram as propriedade psicológicas e as bases cerebrais dos processos mentais os mais diversos, utilizando uma abordagem dinâmica que conjuga o estudo de pacientes com lesões cerebrais, a psicologia experimental e as imagens cerebrais funcionais. No campo da consciência e do inconsciente esta abordagem permitiu, no espaço de uns quarenta anos, transformar a concepção científica da vida mental inconsciente através de três grandes resultados experimentais. Falemos primeiro sobre a definição funcional e descritiva do que se entende por “consciente” e “inconsciente” a fim de dissipar todo mal-entendido. Assim como Freud o formulava desde 1912, em Nota sobre o inconsciente em psicanálise, é possível partir de uma definição descritiva, em negativo, do que se entende por inconsciente: “Chamemos agora de ‘consciente’ a representação que está presente em nossa consciência e da qual temos conhecimento, e digamos que é o único significado do termo ‘consciente’. Quanto às representações latentes, se nós temos qualquer razão para supor que elas existem no espírito - como era o caso da memória - elas serão designadas pelo termo ‘inconsciente’ (Freud, 1991). À luz deste critério de “capacidade de relação mental”, torna-se possível pesquisar dissociações entre quaisquer performances cognitivas (perceptivas, motoras, emocionais, categorização semântica, operações lingüísticas etc.) que surgem inconscientemente, quer dizer, na ausência de uma relação consciente. A neuropsicologia cognitiva contemporânea teve aqui um papel particularmente original, revelando tais dissociações sob formas muito variadas. O primeiro resultado experimental maior neste campo de pesquisa diz respeito à diversidade e à riqueza das operações mentais realizáveis inconscientemente. Longe de serem reduzidas a processos arcaicos, simplórios, automáticos, rígidos, inexpressivos, estas operações extremamente variáveis chegam a ser altamente complexas como a representação inconsciente de certos atributos semânticos de palavras escritas. O significado de uma palavra não percebido conscientemente pode ser inconscientemente representado. A este princípio de diversidade e de riqueza psicológica da vida mental inconsciente faz eco a ausência de setorização anatômica estrita dos correlatos cerebrais dos processos cognitivos inconscientes. Este segundo resultado pulverizou, definitivamente, as diferentes concepções anatomicamente compartimentadas da vida mental consciente e inconsciente. As representações mentais inconscientes não estão imprensadas nos andares “inferiores” do sistema nervoso, mas se pode encontrá-las virtualmente dentro de qualquer região neo-cortical: o inconsciente é ‘corticado’! Enfim, o terceiro resultado importante, cujo alcance nós só conseguimos entrever, se dirige às relações entre nossa atividade mental consciente e os inconscientes multicoloridos que nos habitam. Alguns desses processos inconscientes não se desdobram de maneira independente de nossa atenção e de nossas estratégias conscientes, mas eles são, ao contrário, muito sensíveis ao nosso comportamento consciente. Quer dizer, nós agimos sem o conhecimento sobre alguns de nossos processos cognitivos inconscientes. Esta plasticidade e esta sensibilidade de certos aspectos de nossa vida mental inconsciente poderiam conduzir a alguns progressos terapêuticos e ergonômicos interessantes. Estes três avanços maiores devem ser confrontados a dois outros resultados particularmente importantes: essas representações inconsciente plurais não são em nada comparáveis a nossos pensamentos conscientes.Existem propriedades que parecem exclusivamente reservadas a nossas representações mentais conscientes: a capacidade de manter ativamente uma representação por um tempo virtualmente ilimitado precisa de um modo de tratamento consciente. O conjunto de situações de cognição inconsciente revela o caráter muito evanescente das representações mentais inconscientes, que desaparecem em algumas centenas de milésimos de segundos. A segunda grande limitação trata do que se chama a dinâmica do controle estratégico: a adoção de uma nova estratégia de tratamento da informação, a invenção de um novo modo de tratamento, a modificação do nível de controle executivo necessitam da tomada de consciência do parâmetro que justifica essas mudanças (Dahaene e Naccache, 2001).Quando se relê os escritos de Freud sobre o inconsciente, levando em conta a evolução própria de seu pensamento (exemplo: através dos dois tópicos), é possível destacar os pontos de convergência, mas igualmente os motivos de divergência, por exemplo a oposição radical entre o “sistema Ics” e o conjunto dos processos cognitivos inconscientes objetivados pelas neurociências contemporâneas. Sem entrar aqui nos detalhes desta confrontação, eis que o modelo freudiano do inconsciente apresenta uma incompatibilidade maior com nossa concepção contemporânea. Para além das intuições geniais (elas existem, evidentemente) de Freud sobre o conteúdo de nossa vida mental inconsciente, a pedra angular do edifício freudiano, que é o conceito de recalque, parece consciente demais! Exercer o controle cognitivo sobre as representações inconscientes a fim de impedir o acesso ao sistema preconsciente-consciente, à imagem destes “guardiões da paz mental”, descritos por Freud em sua conferência de Worcester, proferida em 1909, exige a consciência.
Numerosas experiências implacáveis e elegantes da psicologia cognitiva contemporânea nos ensinaram de fato que sem consciência do estímulo a controlar, o controle estratégico não pode ser exercido. O recalque de Freud não é um mecanismo de negação consciente. O segundo problema diz respeito à duração de vida destas representações mentais inconscientes, representações que parecem, segundo Freud, deslizar imperturbavelmente, tais como os cisnes majestosos e atravessar a existência de um indivíduo desde a sua primeira infância: a eternidade deste inconsciente contrasta de maneira palpável com a inelutável evanescência mencionada anteriormente. Como decorrência desta comparação parece assim que Freud provavelmente não descobriu o inconsciente, mas antes de tudo o inventou: o inconsciente freudiano visto como uma ficção consciente de Freud (Naccache, 2006).O que resulta deste exercício de exegese? Basta destacar essas conclusões, ou podemos tentar propor uma nova interpretação do discurso freudiano sobre o inconsciente, distinguindo claramente os “inconscientes contemporâneos”? A tese que eu sustento visa a defender a idéia de que, atrás deste “erro de Freud”, nós descobrimos a propriedade fundamental não de nosso inconsciente mas de nossa consciência: a necessidade vital que nós temos de inventar conscientemente as ficções mentais para chegar a existir. O inconsciente freudiano só existe como uma crença fictícia que permite à nossa consciência encontrar um significado para os acontecimentos de nossa vida psíquica.Ainda que sendo construções fictícias, essas construções interpretativas conscientes não deixam de guiar o rumo de nossas ações e acabam, pois, por inscreverem-se em nossa realidade. A psicanálise freudiana é a primeira tentativa séria e capaz de interessar-se por ficções mentais, e de reconhecer sua importância vital em nossa existência. Suas afirmações teóricas sobre a natureza de nosso psiquismo (em particular de nosso “inconsciente”) são, elas também, altamente fictícias, mas o trabalho muito específico que ela põe em marcha desenvolve-se diretamente a partir do interior do sujeito em nível pertinente à sua economia psíquica. A leitura de Freud que proponho aqui me parece estar de acordo, em relação a este ponto, com certas idéias desenvolvidas por Paul Ricoeur em sua obra sobre a psicanálise freudiana, Da interpretação, na qual há o seguinte subtítulo: A psicanálise não é uma ciência de observação. O conteúdo desta passagem soa harmoniosamente com nossa proposição de que a psicanálise freudiana é uma abordagem imediatamente interpretativa e não precedida de uma fase descritiva dos fenômenos psicológicos (Ricoeur, 1995).Assim Freud abriu, sem dúvida de maneira intencional, as portas das neurociências da arte da ficção, faculdade fundamental de nossa atividade mental consciente, arte da ficção que nós apenas começamos a explorar nos laboratórios das neurociências cognitivas.

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