sexta-feira, 1 de maio de 2009

Georges Bataille

O grande paradoxo da nudez, parece, é que ela, embora esteja à nossa frente, jamais será conquistada. Há algo de inatingível nesse corpo que se deixa tocar ao abrir-se inelutavelmente para a comunicação com outro. Tal “conquista” não é definitiva, mesmo quando no afã dos corpos ela quer render-se a ponto dos partícipes do jogo erótico sentirem que “possuem” um ao outro mesclando-se através dessa porta encantatória, à luz dos poros: a nudez.
Por isso soa insustentável, na medida forçosa e ilusória do mito (no sentido barthesiano do artifício querendo-se natural), o ideal adâmico dos nudistas no encalço de um suposto paraíso. Afinal, a nudez aqui é ostentada em nome de quê? Da vida ao ar livre? Da liberdade? Da transgressão ingênua que se faz lei? Hedonistas, acreditam agir “conforme à natureza” passando a desfrutar das graças de uma comunidade instituída sob a lei de seu próprio desejo. Mas na crença de uma vida mais livre, “sem preconceitos”, e sobretudo sem o “constrangedor” sentimento da vergonha, tal utopia acaba neutralizando o que há de mais essencial na nudez: seu erotismo. Desfraldada (como uma bandeira), a nudez se esvazia e os corpos nivelados “pela natureza”, ou em seu nome, perdem sua dimensão simbólica, onde por sinal vivemos.
Bem outro é o sentido da nudez em Georges Bataille. Ela é objeto de um rito que comunica aos homens sua essencialidade, isto é, seu erotismo. Sua presença retoma especialmente a relação com o sagrado. Para ser “encontrada” a nudez tem que se apresentar ao sujeito enquanto objeto sagrado, investida de seus símbolos. A roupa surge assim como o artifício que redimensiona a nossa relação com o nu. Daí a extraordinária percepção de Bataille: “a roupa é um meio de se atingir a nudez”. A roupa, podemos acrescentar, e todo o teatro decorrente de seu contato com a pele, no qual o movimento intermitente do esconde-esconde é tão imprescindível quanto a variedade, a textura e a cor dos tecidos através dos quais os corpos se exibem, se excitam. Aderências do fruto. Sutilezas da “segunda pele”. Conhecemos todos a nudez. Mas é preciso perdê-la de vista se quisermos reencontrá-la. Eis a mola desse erotismo. Se o teatro da nudez é erótico em si mesmo, é porque ao ser tocada (profanada) enquanto objeto sagrado, a nudez leva ao erotismo essencial: fusão e supressão dos limites.
Sempre extrema, a nudez é uma imagem fronteiriça, uma presença cuja abertura ao erotismo também leva à morte, já que em Bataille tais noções se assemelham, se confundem. Por isso, “uma mulher nua é a imagem do erotismo”, como também é “a imagem da morte”, afirmações que jogam um tanto perversamente com o aforismo de William Blake: “A nudez da mulher é obra de Deus”. Bataille assinala que o espírito de Blake se abre para a verdade do mal. O que surpreende nesta frase é que o corrente “Deus criou os homens nus” ganha certa ênfase na versão blakeana. O criador torna-se maliciosamente parcial na voz do poeta.Bíblico em sua origem, o consórcio entre a nudez e o erotismo nasce justamente da transgressão de uma lei, encontrando de modo definitivo outro sentido para os corpos nus: sua ardorosa e necessária fusão. Se a nudez é o caminho para o sexo, em Bataille essa peripécia adquire escuros matizes. Que a nudez participa do erotismo é tão claro quanto a nuvem negra para as lágrimas do céu. Mas é preciso observá-la segundo o comércio das imagens proposto.
Em O Padre C. (L’Abée C.), Éponine encontra-se “bêbada e muda, no topo do santuário”. Antes, já sabíamos, embebedara-se e estava “pelada debaixo do casacão”; enfim, nenhuma coisa nem outra, ou melhor: ambas as coisas. A mulher mantinha “as mãos cerradas” sobre o casacão mantendo-o fechado, mas estas “podiam ali estar exatamente para abri-lo”. Vemos assim Éponine “ao mesmo tempo vestida e nua, pudica e impudente”. Nudez entrevista em sua verdade oscilante. Tal tensão é erótica na dobra estilizada do sintagma, ou como diria Roland Barthes: na medida em que o sentido se produz sensualmente no jogo da intermitência, nesse atrito entre opostos. Nada pior para o padre que “admitia de modo extremamente bizarro a angústia diante das delícias da nudez!” Sim, a nudez angustia porque exige continuidade, fusão a todo custo. Diante dela, ninguém fica indiferente. O drama do religioso é manter as demandas de seu corpo suficientemente interiorizadas para que aos poucos se dissipem. O problema é que Éponine não pára de tentar o padre, talvez porque ele dê todos os indícios de que, ao querer furtar-se ao erotismo, fortalece a própria imagem sedutora da moça, a qual se afirma negando a possibilidade do padre exercer seu voto e conciliar-se inteiramente com seu credo. Os valores eróticos crescem nos contrastes. Bataille confirma-o nas entrelinhas: a religião católica quer convencer de que os caminhos do corpo não são os mesmos de Deus, de que a transcendência para este só é possível mediante uma negação daquele, mas só faz contradizer-se quando um de seus missionários sucumbe ante a inexorabilidade do erotismo. Assim o padre C. resiste à tentação de Éponine, com quem tivera, na infância, contato íntimo, a exemplo de seu irmão gêmeo Charles, para depois, em pleno sacerdócio, chafurdar no sexo com Rosie.
Não é à toa que o padre C., doente, desfalece no altar ao ser observado por Éponine. Quando lhe despem, o comentário do narrador é o seguinte: “O despojamento do padre inanimado sobre os degraus era fúnebre”. Mais adiante, observa-se o efeito sobre a própria batina: “a nudez da batina diante do altar era macabra”. A nudez é deslocada para o uniforme do clérigo e a sua, propriamente, desaparece. Batinas são negras. Adentramos o macabro. O padre está para morrer, o leitor conhece seu destino (selado antes pelo narrador). A nudez é uma imagem de morte, um prenúncio cujo clarão funciona (cada vez menos hoje em dia, é certo) como uma súbita desordem, um frenesi nos sentidos.

Opera também no texto o ateísmo. A religiosidade cristã renega o erotismo; nesse ponto o sacrifício de Cristo é em vão, pois contraria a essência do homem. A igreja emblematizada na figura (na batina) do padre C. está irremediavelmente morta. O padre C. sucumbe como em Sade, no “Diálogo entre um padre e um moribundo”, o personagem de função idêntica atirando-se sobre um grupo de mulheres “mais belas que a luz”. Não há transcendência em Bataille: o enlevo místico não leva a Deus, mas ao mergulho abissal no corpóreo.Em seu belo e fundamental O erotismo, Bataille argumenta que as mulheres “se propõem como objetos ao desejo agressivo dos homens”. E ainda: “A mulher nua está próxima do momento da fusão, que ela anuncia”. Mas este ato, em Bataille, não se faz impunemente. Ele atinge mais plenamente seu sentido quanto mais participa da violência, pois, como se sabe, em Bataille, não há “boa” sexualidade. Toda lei existe para ser violada. Vivemos num mundo em que o tempo todo, em toda parte, os limites são transgredidos. Há na natureza e subsiste no homem um movimento que sempre excede os limites. Apesar de todo concreto armado da racionalidade, sempre haverá fissuras, e alguma forma de violência estará presente. A literatura e as artes, a propósito, são formas de lhe dar vazão; loucura e lucidez, tão atentas quanto atadas. O erotismo, para Bataille, é um aspecto decisivo da vida interior do homem; é o que o define e o distingue dos animais. O erotismo põe o ser em questão. Mas não é um retorno à natureza ou uma mera liberação sexual (as proibições, ao contrário, são necessárias para haver transgressão e superação dos limites). O erotismo é uma experiência que depende de seu aspecto proibido e sagrado e nasce justamente desse sentimento de violação, de profanação de seu objeto.
Uma das conseqüências fundamentais desse pensamento é a ligação do erotismo com a morte. Recorrência a Sade: “o melhor meio de se familiarizar com a morte é ligá-la a uma idéia libertina”. Mas o erotismo não se confunde com a mera atividade sexual. É uma dimensão particular dela, uma afirmação da volúpia infinita ligada à agitação sexual. “O erotismo é tudo o que está ligado à sexualidade profunda. Por exemplo: sangue, terror, crime, tudo o que destrói indefinidamente a beatitude e a honestidade humana”. Daí sua maldição. O erotismo se liga à morte porque de certa forma antecipa a experiência da morte. A desordem sexual é maldita. O corpo é maldito, sobretudo porque finito, perecível, e essa verdade é insuportável. A nudez, assim como os brancos ossos do esqueleto (já que a cultura não suporta a podridão, nem a sujeira da morte), é certamente um vestígio da tragédia humana, mas também de seu êxtase. O homem, segundo Bataille, é um “dado trágico”, não fosse isso, provoca, teria concebido Deus?A mesma beleza fúnebre pode ser vista em muitos de seus poemas, como nestes versos: “teus seios se abrem como um caixão” (…) “tuas longas coxas deliram / teu ventre é nu como um ralo (estertor)”. Neles vida e morte, dor e êxtase comunicam-se em agonia numa estética que permeia o sujeito com sua ambivalência.A nudez jamais é um referente vazio, isolado, nem jamais é absolutamente “nua”, e o erotismo é a articulação desse objeto luminoso em linguagem. O macabro não “mata” o erotismo (como faz a pornografia), ele o preenche, o alimenta, o consagra. Quem sucumbe à nudez é o sujeito (ela o exige), levando-o a aniquilar-se no outro.Eis o significado da prancha de Hans Baldung Grien, A morte beijando uma jovem nua diante de uma tumba aberta, sobre a qual poder-se-ia dizer com Bataille: “somente a nudez tem o sentido da morte”. A morte esquelética abraça por trás a jovem horrorizada, beijando-a indefesa. Enquanto é beijada, relutante, seu manto se desenrola por entre os dedos, exibindo seus seios, o ventre e o púbis negro. A nudez é lubricamente violada pela morte que, extasiada, expõe seu segredo. Tal gestualidade ilustra o erotismo em Bataille.Em Madame Edwarda, a personagem homônima brinca de esconde-esconde com um angustiado sujeito que também narra o relato. Eles se encontram sob a porta Saint-Denis imersos na escuridão da noite. Edwarda “dissimula” sua nudez sob uma capa preta com capuz e uma máscara de lobo rendada, que a torna meio animal, meio humana. Súbito Edwarda desliza de um pilar a outro e desaparece sob o arco. Ela “era Deus”. A dissimulação do corpo pela capa e sua imperceptível fuga acontecem a céu aberto. Começa ali para seu acompanhante “um tempo de agonia”, e ele não duvida de que naquele instante “a morte a possuía”. Edwarda entra numa espécie de transe erótico agitando-se sob “espasmos respiratórios” e o homem tem de retirar as rendas da máscara “que ela engolia e rasgava com os dentes. Seus movimentos desordenados haviam-na despido até o monte de Vênus: sua nudez, agora, tinha ausência de sentido e ao mesmo tempo o excesso de sentido das vestes de uma morta”. É isso a nudez em Bataille: vazio angustiante que no fundo é sentido em excesso. A nudez é algo que se define como ausência, mas uma ausência luminosa que guarda um elo com a morte. A mortalha é a roupa menos o corpo, o que simboliza esta separação. No entanto, é ela que insufla na nudez seu sentido excessivo como o sangue branco de um cadáver. A nudez é positivamente a imagem da morte, mas uma morte que encontrou sua glória em Eros.A certa altura da narrativa de O impossível, o leitor se depara com algo que poderia ser uma cena sexual, mas rápida, fulgurante, entrecortada por outras imagens, movimento coroado pela frase: “Neste momento, a doçura da nudez (o nascimento das pernas e seios) tocava o infinito”. Numa nota ao romance, ao final do volume, Bataille escreve que ao dizer isto define o impossível..

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