sexta-feira, 1 de maio de 2009

entrevista:Christophe Bident...Biógrafo de Maurice Blanchot...

http://www.mauriceblanchot.net/blog/
O teórico e crítico literário Maurice Blanchot (1907-2003) influenciou toda uma geração de pensadores franceses da segunda metade do século XX. Michel Foucault e Jacques Derrida se debruçaram sobre seus textos, mas outros também o fizeram, como, por exemplo, Roland Barthes. Dentre seus ensaios seminais, citaria “A literatura e o direito à morte”, que fecha o volume A parte do fogo (Rocco, 1997), obra referencial para os estudiosos da literatura. Blanchot é também cultuado na França como um importante escritor do pós-guerra, autor de romances e novelas paradoxais. No Brasil, em 2006, foi publicada a importante antologia O livro por vir (Martins Fontes), numa tradução de Leyla Perrone-Moisés, obra que contém ensaios sobre diversos autores, como Mallarmé e Artaud, Borges e Beckett. A produção literária de Blanchot, no entanto, continua ignorada entre nós, onde só foi publicado, em 1991, o romance Pena de morte (Imago), que embaralha os gêneros narrativos, pois é, simultaneamente, história de amor e de terror, memória e reportagem, reflexão filosófica e estudo de um delírio. Talvez um paradigma do texto pós-moderno, que passa por todos os gêneros, sem se fixar em nenhum. Professor da Universidade de Paris 7, Christophe Bident (1962 - ) é autor de um alentado ensaio biográfico sobre o escritor francês, intitulado Maurice Blanchot, partenaire invisible (Maurice Blanchot, parceiro invisível), publicado em 1998 (Éditions Champ Vallon), ainda inédito em português. Na entrevista a seguir, Bident discute a escrita e o fragmento, o discurso e o diálogo, expondo diferentes facetas da escrita e do pensamento de Blanchot.
P. Onde começa a obra de Blanchot? No romance, ou literatura, ou na reflexão filosófica? R. Onde começa uma obra? Isto é, em que lugar, em que espaço ela nasce quando começa a ser reconhecida? Ela possui mesmo uma origem, uma única origem? O que a inicia? No francês antigo, débuter (começar, estrear) significava, num jogo, deixar uma bola bater em outra já lançada por um adversário. Contra qual obra a de Blanchot se choca, iniciando-se? Começa como obra? Começa, como você sugeriu, num gênero, o romance, ou numa disciplina, a literatura, a filosofia? Blanchot parece responder duas vezes a essa pergunta. Uma primeira vez em 1980, em L’Écriture du desastre (A escrita do desastre), quando evoca a cena primitiva na qual a criança, de seis ou sete anos, experimenta pela primeira vez a sensação do vazio, do nada, da insignificância, ao olhar o céu pela janela. Uma segunda vez em 1983, em Après coup (Logo depois), quando evoca dois relatos, “L’idylle” (Idílio) e “Le dernier mot” (A última palavra), os quais, redigidos secretamente em 1935 e 1936, lhe permitiram decantar uma escrita que se escorava há muitos anos numa forma romanesca: pôde então concluir seu primeiro romance, publicado em 1941 e intitulado Thomas l’ obscur (Tomás, o obscuro). Esses relatos breves teriam, assim, iniciado um romance que inaugurou oficialmente a bibliografia de Blanchot. Um romance que se inicia, que vai de encontro a si mesmo, pois nove anos mais tarde, Blanchot publicará uma segunda versão, que substituirá definitivamente, a seu olhar, a primeira. Assim, os textos iniciam outros, sem fim, e são justamente tais desenvolvimentos de substituição, de desvio, de apagamento que Blanchot não cessará de evocar, ao associar a palavra literária ao interrompido, ao imemorial, ao anterior ou ao incessante.
Que a origem esteja sempre já na letra é o que a obra não pára de repetir, e sabemos o proveito que disso tirará um leitor como Jacques Derrida. A letra não é aí, portanto, menos vital. Maurice Blanchot pediu certa vez à editora Gallimard que escrevesse, dali por diante, no início de cada um de seus livros que seriam reeditados na coleção “L’imaginaire”, a seguinte frase: “Sua vida é inteiramente dedicada à literatura e ao silêncio que lhe é próprio”. É uma fórmula que admiradores e desafetos quiseram ler valorizando o processo de apagamento por meio do qual o autor desaparecia em seus livros. Uns e outros leram a frase começando pelo fim. Era o espírito da época. Mas o que dizer da vida, da “sua vida”? Não é ela que atravessa a literatura, onde silencia? São com efeito tais traços que encontramos, diversamente urdidos, nos romances e nos relatos de Blanchot. Com meu amigo Pierre Vilar organizei em Paris há quatro anos um colóquio sobre Blanchot, que decidimos intitular “Maurice Blanchot, relatos críticos”. Pareceu-nos que tudo em Blanchot era récit (relato). Suas críticas são dramáticas, retóricas, e a sua façanha é ter construído uma obra de crítica, provavelmente a maior do século XX, fazendo leituras com o mesmo impulso inicial. É um crítico que passou a vida comentando, para jornais e revistas, livros que acabavam de aparecer. Ele dedica uma atenção muito precisa ao movimento dos textos que comenta, situando-os ao mesmo tempo no projeto que é seu: cercar a parte secreta, neutra, impessoal da criação. Assim ele construiu uma obra com o tempo, com o seu tempo. A parte crítica se refletirá nos romances, relatos, fragmentos.
P. Por que Blanchot preferiu o jornalismo ao ensino universitário? R. A resposta a essa pergunta se encontra em parte já na precedente. Ela aparece mais profundamente em “La solitude essentielle” (A solidão essencial), esse texto magnífico que abre a crônica de Maurice Blanchot na Nouvelle revue française, em 1953, e que por sua vez abrirá, em 1955, O espaço literário (Rocco, 1987). O jornalismo, aquele dos anos 1950 e 1960, permitiu-lhe exercer um intercâmbio dialético com o mundo, o que ele chamará, em uma carta a George Bataille, de “nomear o possível”. A escrita em si lhe permitia se retirar do mundo e “responder ao impossível”. De um lado, um dever, do outro, uma exigência. De um lado a presença, do outro, a ausência. E, para ele, a presença não podia ser da ordem da mestria, da mestria conceitual, professoral. Beckett tentou um pouco, antes de compreender que o ensino não era feito para ele. Blanchot nem sequer tentou. É necessário também lembrar que ele provavelmente freqüentou pouco a escola: seu pai era preceptor privado, e o menino, extremamente dotado, fez o exame final do liceu com 15 ou 16 anos. P. Blanchot escolheu a forma do diálogo e do fragmento, formas importantes da expressão do seu pensamento. Por quê? R. Novamente, esse tema acabou de ser abordado. É que suas questões estão extremamente interligadas e você as coloca em termos de escolha. É uma maneira determinista, ou sartriana, de ver as coisas. Talvez se possa dizer também que você escolhe a escrita, uma forma de escrita. Entre uma decisão tomada e uma escolha consentida, muitos motivos entram em jogo. A conversa e o fragmento não aparecem senão muito tarde na escrita de Blanchot, cuja sintaxe permanece sobretudo interligada. Penso que sua ligação com Emmanuel Lévinas determinou de um modo muito nítido a forma do diálogo, da conversa. É em A conversa infinita (Escuta, 2001) que ele começa a utilizá-la regularmente: em lugar de apresentar suas idéias sob forma discursiva e linear, ele escolhe dois interlocutores que dialogam, sendo que um deles representa mais seus próprios pensamentos. Esses textos, dos quais alguns pressupõem Lévinas, ilustram o caráter dissimétrico do diálogo, e ilustram a dissimetria das discussões que Blanchot podia ter com Lévinas (uma não-simetria, mas não uma convergência ou divergência) sobre questões filosóficas, como aquelas do diálogo, da troca e da partilha. Pode-se afirmar, acredito, que a forma da conversa desemboca naquela do fragmento. E isso é cronológica e logicamente verificável. Nas conversas que ele escreve, nas conversas que lê, é a parte central e morta do diálogo que lhe interessa cada vez mais: o entre que surge entre os interlocutores. Essa parte secreta e inominável é aquela que os fragmentos designam. Os fragmentos são como os restos de uma conversa impossível, a começar pela conversa de uma civilização que chega ao desastre da Shoah, o acontecimento “absoluto”, como diz Blanchot, que exerce papel fundamental num texto como L’Écriture du désastre (A escrita do desastre), escrito em fragementos. Acrescentemos que Blanchot redige sua escrita fragmentária nas pegadas daquela de Heráclito, Nietzsche ou Bataille, sem falar do romantismo alemão, escritores ou movimento aos quais, na mesma oportunidade, ele presta homenagem. Mas eu penso que não se pode isolar essas duas formas do resto da obra de Blanchot. Nele, a escrita sempre apresentou o paradoxo de ser um misto de continuidade e descontinuidade. Numa tese que acabou de ser defendida na Universidade de Paris 7, Les plans du récit (Os planos do relato), Jonathan Degenève mostrou como os textos de Blanchot, Beckett e des Forêts, e também aquele do cinema de Welles, se recusavam, os primeiros, a “insensibilizar” as transições, e o último, a “narrativar” os cortes. As escrituras assumem a descontinuidade inerente à acidentalidade do gênero narrativo. Elas expõem o modo de construção de todo relato: a disjunção de planos. E como a obra de Blanchot me parece inteiramente narrativa, isso equivale a dizer também, num certo sentido, que ela é inteiramente fragmentária, sob modos diversos que uma leitura poética, que ainda não foi feita, deveria poder indicar.P. Maurice Blanchot escreveu um relato sobre um jovem “morto-imortal”, L’instant de ma mort (O instante da minha morte). Blanchot fala dele mesmo? R. Dele mesmo? Ele, o homem, o autor que, segundo os contratos de leitura estabelecidos pelos estudiosos da poética, poderíamos identificar com o narrador-personagem do relato? E ele mesmo, o ipse (o mesmo), a categoria da reflexão, do olhar, da identidade, do entre-dois, segundo uma reflexão filosófica, conferiria ao relato um valor, se não testamentário, ao menos testemunhal? Blanchot fez de tudo para embaralhar as pistas. O acontecimento enquanto tal, o acaso que lhe permitiu escapar da morte no final da segunda guerra mundial, é confirmado por uma carta endereçada a Pierre Prévost dois meses depois dos fatos, em setembro de 1944. Também é evocado muito brevemente num relato publicado em 1949, o qual mais tarde se intitulará La folie du jour (A loucura do dia). O fato é ainda atestado por amigos de Blanchot, a quem ele fez confidências. A esses diferentes modos de relação, epistolar, ficcional, oral, podemos acrescentar nossa fé. O que mais, além disso? Talvez, levar em conta o humor da narração, começando pelo jogo com a data escrita na casa da família: 1807, escreve Blanchot, precisando que se trata do ano em que Napoleão entrou em Iena, sob os olhos de Hegel postado numa janela. Ora, a data escrita na casa da família de Blachot, em Qauin, na Borgonha, é 1809, e a data da invasão francesa é 1806. Inserindo uma data intermediária, Blanchot modifica duas vezes a realidade, a realidade familiar (a fundação da casa onde nasceu), a realidade histórica (a ocupação francesa que motivará depois as ocupações alemãs). Por meio dessa ficcionalização do acontecimento, ele escreve seu próprio nascimento, 1907, na genealogia de uma família de proprietários de terra. Assim, 1907 se torna a data de celebração do centenário da casa da família. Como sucede muito em Blanchot, uma vacilação de datas que, desta vez, lhe permite mostrar-se ao leitor a um só tempo como ele, na realidade, e ele mesmo, na ficção. P. Blanchot amava a literatura e a música. Ele escreveu sobre esse último tema? Existem músicos entre os personagens de Blanchot? R. Sim, como muitos escritores, Blanchot amava tanto a música quanto a literatura, se não mais. Durante toda a sua vida, foi excelente pianista; seu compositor preferido era Schumann. Jamais quis escrever música. Mas sabemos até que ponto era sensível à poesia, e conhecemos o número considerável de artigos que escreveu sobre poetas. Sua prosa, aliás, é muito poética. Se não há músicos nos seus relatos, há uma cantora, Cláudia, em Au moment voulu (Na hora certa). E é uma mulher amada pelo narrador, a quem este propõe que venha viver com ele no sul. Esse pedido é provavelmente autobiográfico: penso na mulher que Blanchot amou, Denise Rollin, que foi a mulher de seu amigo George Bataille. Mas o relato faz também de Cláudia um “personagem conceitual”, segundo a fórmula de Deleuze; um personagem poético, musical, canoro. Denise, Cláudia, a vida, a ficção: ela, ela mesma.


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