terça-feira, 28 de abril de 2009

Peter Sloterdijk,Sem domícilio fixo

O que Peter Sloterdijk pretende não é nem condenar, nem idolatrar, mas propor-nos um reconhecimento do monstruoso como monstruoso e uma capacidade para o pensarmos.Parece que Peter Sloterdijk está destinado à provocação. De certo modo, se o não fizer, desilude os seus ouvintes e leitores. É por isso que a sua comunicação na Baviera, num colóquio consagrado a Heidegger, em Julho de 1999, foi mais uma vez objecto de reacções violentas e debates apaixonados.Mas o próprio texto já o tinha programado. O autor começa logo de entrada por observar que grande parte do modernismo estético e filosófico até aos anos 60 (dos expressionistas de 1920 aos existencialistas de 1950 - e poderíamos falar nos bataillianos e blanchotianos dos anos 60 e nos revolucionários de 68) se definiu por um acentuado desprezo pelas situações médias. Não foi o historiador britânico Eric Hobsbawm que definiu parte do século como uma "idade dos extremos"? Os extremos têm um pensador privilegiado: Nietzsche. Ora é curiosamente esse mesmo Nietzsche que faz a transição entre um modernismo dos extremos e um espírito pós-moderno que se situa claramente no campo oposto. Como escreve de um modo muito pertinente Peter Sloterdijk, "as premissas históricas do pensamento no fim do século XX recomeçaram a transformar-se de um modo fundamental. Sob o nome de código de 'pós-modernidade', instalou-se, pelo menos desde há duas décadas, um estado de consciência pós-extremista, no qual reaparece um pensamento das situações médias. (...) O resultado destas reflexões pós-radicais, pós-marxistas, pós-apocalípticas, neo-cépticas, neo-morais, etc., desemboca no presente numa situação social cada vez mais impregnada pelos mitos e rituais da comunicação, do consumo, da rentabilidade acrescida, e da mobilidade - um novo Eldorado das situações médias. Neste clima neo-medíocre, a propensão e a capacidade para nos reapropriarmos dos fragmentos do extremismo declinam de novo - em regra geral, hoje, é preciso fazer o desvio pela biografia ou por outros modos derivativos da escrita se queremos entender alguma coisa destes radicalismos fracassados." Mas se esta "miniaturização deve ser entendida como um tributo quase natural à normalização" ("a democracia implica por si mesma um triunfo das situações médias"), este pensamento "não está em sintonia com os acontecimentos maiores da nossa época, e perde a capacidade para apreender as realidades imensas do processo de civilização".Eis a questão central: quais são os acontecimentos fundamentais da nossa época? E, face a eles, como conseguir, segundo a lição de Heidegger, resistir à "banalização do monstruoso"?É aqui que surge a palavra-chave: o homem é um produto; e só pode ser compreendido a partir do seu modo de produção.
É aqui portanto que começa o escândalo Sloterdijk. Porque ele vai saltar a pés juntos sobre a perspectiva humanista (o homem como sujeito de si próprio) para estabelecer uma relação entre o homem no seu confronto com o "divino", e, depois, numa progressiva viragem ateológica, entre o homem no seu confronto com o "monstruoso" - porque, nos nossos dias, "o monstruoso instalou-se no lugar do divino".O que nos coloca face a uma "antropotécnica", e perante a seguinte perspectiva: "uma parte do género humano actual, sob a direcção da fracção euro-americana, tentou, com a sua entrada numa era altamente tecnológica, um procedimento sobre si mesmo e contra si mesmo cujo móbil é uma nova definição do ser humano", o que faz que "as condições de produção do ser humano começam hoje a constituir-se de uma maneira mais formal, mais técnica e mais explícita do que nunca". Se em 1945, com Hiroshima, tivemos um apocalipse físico, em 1997, tivemos, com a divulgação pública das experiências de clonagem, um apocalipse biológico. Mas a nossa época é de tal modo tentada pelas situações médias que "o apocalipse do homem tornou-se algo de quotidiano".O que Sloterdijk pretende não é nem condenar, nem idolatrar, mas propor-nos um reconhecimento do monstruoso como monstruoso e uma capacidade para o pensarmos. Para isso precisamos de aceitar duas coisas: primeira, que o homem é um produto, e um produto em aberto; segunda, que o produtor desse produto não é nem Deus, nem o próprio homem (nem teologia, nem humanismo). Então quem produz? Há nesta pergunta um pressuposto que convém pôr em relevo: pressupõe-se que o produtor está acima do produzido. Ora (e esta proposta teórica de Sloterdijk aproxima-o de Negri e Hardt) o que devemos dizer é que o produtor é imanente ao próprio produzido, que "o homem é o produto de uma produção que ela própria não é o homem, que não é conduzida pelo homem de um modo intencional, e o que não será já o-que-viria-a-ser antes de o vir a ser. Trata-se portanto de descrever um mecanismo antropogenético, e explicar, a partir dele, que ele procede de um modo decididamente pré-humano e não-humano, e que em nenhuma circunstância pode ser confundido com a acção de um sujeito produtor, seja divino, seja humano".Isto implica uma nova problemática do Ser e do espaço, a afirmação de um conceito a que Sloterdijk chama de "dimensional" e a análise de uma condição tensiva do dimensional. Agora a tensão faz-se entre a relação-com-o-mais-longínquo, isto é, a clareira e o êxtase, e um-ser-cada-vez-mais-junto-de si, isto é , a ideia da casa do Ser. A esta nova noção do espaço (que se sobrepõe à temporalidade) Sloterdijk chama "esferas", definindo-as como "entre-mundos": nem um enclausuramento no cárcere ambiental, nem o terror de uma permanente abertura ao Exterior, mas uma situação de suspensão tensiva entre mundos e entre aberturas. E no processo de formação das esferas será possível encontrar quatro tipos de mecanismos: a insulação; a supressão dos corpos, a neotenia e a transposição (como é óbvio, ditos assim , estes termos valem o que valem: o que interessa são as longas análises do modo como tais mecanismos funcionam).Numa perspectiva histórica, o homem deve tornar-se totalmente doméstico antes de iniciar o processo de se tornar totalmente extático. É aqui que se pode falar em "domesticação do Ser" a partir das antropotécnicas primárias: técnicas de educação, linguagens, códigos, rituais, regras de parentesco, normas de casamento, etc.. Só que a biotecnologia contemporânea cria antropotécnicas secundárias e é aqui que a casa do Ser começa a soterrar-se sob o peso dos seus próprios andaimes: "A palavra e a escrita, na era dos códigos digitais e das transcrições genéticas, já não têm um sentido que seja de um modo ou de outro doméstico. As composições da técnica desenvolvem-se fora de qualquer hipótese de transposição e não suscitam nem aclimatações nem efeitos de domínio da exterioridade. Pelo contrário, aumentam o volume do exterior e do nunca assimilável". O homem parece cada vez mais condenado à errância - como um ser sem domicílio fixo.

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