quinta-feira, 30 de abril de 2009

Paul Ricoeur

Eu gostaria de começar com um questão a respeito da sua trajetória intelectual e de seu primeiro livro: A filosofia da vontade. Livro que apareceu em um momento filosófico dominado pela fenomenologia. Quais foram as coordenadas que o levaram a escolher o problema da vontade como tema filosófico?Creio que há duas razões, se é que podemos reconstruir nossa própria história, já que somos narradores de nós mesmos tão inseguros quanto os outros também o são.Antes de mais nada, havia a situação da fenomenologia. A meus olhos, ela estava marcada pelo lugar ocupado por Sartre e Merleau-Ponty. Ora, minha referência era Merleau-Ponty pois eu não me interessava muito por Sartre e pela sua oposição entre o ser e o nada. Neste quadro, depois da Fenomenologia da Percepção eu me perguntei: o que resta a fazer? A resposta, por subtração, era a região prática.De outra parte, eu tinha um interesse de longa data a respeito da vontade má, que se exprimirá no livro seguinte sobre o simbolismo do mal. Mas, primeiramente, era necessário falar sobre o problema da vontade sem relacioná-lo ao problema moral. Desta forma, eu podia articular uma preocupação antiga, que vinha do meu questionamento sobre a religião, e uma solicitação do presente.Depois desta obra o senhor voltou-se à psicanálise. O que exatamente o interpelava em Freud?Aqui também minha resposta será dupla. Primeiro, pensemos a psicanálise em relação à fenomenologia. Sabemos que a fenomenologia coloca seu foco principal na questão da consciência. Logo, o inconsciente aparecia como um ‘desafio’ epistemológico. Ora, eu levei muito a sério a noção de inconsciente enquanto algo irredutível ao que Sartre havia compreendido como má-fé. Minha questão era: há lugar para o inconsciente na fenomenologia? A resposta era ‘não’. Neste sentido, era necessário deixar o ‘desafio’ aberto pois, com o inconsciente, a fenomenologia encontrava seus limites. E lembremos que reconhecer seus limites é ainda fazer ciência. Para Kant, a tarefa crítica consiste em reconhecer o que se coloca como limite e, no mesmo movimento, determinar quais são as circunscrições de jurisdição da racionalidade. Veja que esta exploração sistemática dos limites é um ponto que será muito recorrente na minha filosofia.Agora, havia uma outra razão ligada ao projeto de que falávamos antes a respeito da vontade má. Eu tinha escrito um livro intitulado O simbolismo do mal dez anos após O voluntário e o involuntário. Era a segunda parte do que eu chamara de filosofia da culpabilidade. Lá eu desenvolvia a idéia de que nos grandes mitos o mal encontrava expressão adequada e, de maneira geral, em uma linguagem simbólica. Pense, por exemplo, no mito da queda. Eu encontrei na psicanálise uma espécie de contestação. ‘Contestação’ porque ela aproxima-se da culpabilidade através do mórbido e não através de uma justificação simbólica. Daí temas como a auto-acusação e auto-perseguição. Eu tinha então um problema de balança. Tratava-se de saber o que era mórbido e o que era são na culpabilidade ou, antes, qual era a relação entre o normal e o patológico na má-consciência.Mas havia também um problema relacionado ao estatuto do simbolismo. Pois há na psicanálise, uma análise do Simbólico a partir do sonho e da fantasia. Ou seja, Freud reconstrói o campo simbólico através do seu núcleo onírico. Há então uma confrontação dupla: temática, no que diz respeito à má-consciência, e epistêmica, se pensarmos no problema do estatuto do simbolismo.

O senhor percebeu a psicanálise como um campo produtor de novas questões. Mas hoje falava-se muito em uma ‘crise da psicanálise’. Um assunto que também concerne os trabalhos do senhor, já que eles são um alvo do anti-freudismo norte-americano.Se você está pensando nas crítica de Adolf Grumbaum contra mim, digo que elas erram totalmente de alvo. Ele acredita que faço uma leitura hermenêutica da psicanálise, enquanto que, na verdade, eu a trato como um saber absolutamente estrangeiro à fenomenologia. Deve-se analisar minha leitura da psicanálise a partir do que desenvolvo em O conflito de interpretações. Pois é em um campo conflitual que a interpretação psicanalítica deve ser pensada. Conflitual em relação a mim, em relação à fenomenologia e também à hermenêutica de textos.Sobre a idéia de ‘crise’, creio que a crise é permanente na psicanálise. Freud sempre se confrontou com uma série de rupturas, basta lembrarmos das dificuldades enormes na consolidação da Sociedade Psicanalítica Vienense. Há aí um destino que me parece absolutamente típico de uma disciplina que avança de crise em crise. Mas isto não a condena, já que este é seu regime de pensamento. Cada vez que um grande psicanalista teoriza, ele passa à uma sistematização que aparece como excesso em relação a suas descobertas clínicas; o que gera um descompasso entre teoria e clínica que aparece como motor de crises e de debates promovidos pela geração posterior.É interessante dizer isto pois, hoje, me dou conta que minha leitura de Freud pecou devido à uma espécie de superestimação do teórico. Eu li principalmente os artigos de sistematização. Ora, duas coisas são dominantes em Freud. Primeiro, as cinco grandes psicanálises (Dora, o pequeno Hans, O homem dos ratos, O homem dos lobos e O Presidente Schreber) e, segundo, o papel da transferência. Para mim, a transferência tem uma relação muito precisa com o tema da crise, já que cada grande psicanalista suscitou um tipo particular de transferência que traduziu-se na tendência para transformá-los em objetos de amor e de ódio. Logo, o caráter polêmico da teoria está de uma certa forma inscrito no próprio ato terapêutico, que sempre será controvertido.Na verdade, a relação entre prática e teoria psicanalítica ainda constitui um grande mistério para mim.Após todas estas reflexões sobre a psicanálise, o senhor voltou-se ao diálogo com a pragmática anglo-saxã. Por que o senhor se voltou a uma tradição filosófica aparentemente tão distante da sua?Trata-se de uma espécie de imposição interna à minha temática concernente à linguagem. Você sabe que a psicanálise é originariamente uma cura pela linguagem pois é no dizer e na dificuldade em dizer que se dá a relação terapêutica. Há um manejo da linguagem por parte do outro, até porque a memória não é fácil. Ela não é espontânea, à exceção de algumas lembranças maravilhosas à la Proust. Normalmente, é necessário procurar as lembranças pois há sempre resistências. A questão psicanalítica de vencer as resistências pode ser transformada na questão de saber como dizer, como o outro pode me fazer dizer o que me parece impossível. Isto me levou a perguntar: ‘como tal prática da linguagem está implicada em uma teoria geral da significação?’. E neste ponto eu fui levado a me confrontar com a herança de Frege e com as primeiras pesquisas lógicas de Husserl sobre a significação (Meinung ). Dentro deste quadro eu procurava entender como se articulava um ato de enunciação e um sujeito da enunciação, ou seja, um locutor. É claro que a pragmática anglo-saxã apareceu no meu horizonte como caminho necessário.Vale a pena lembrar que a questão da enunciação se impôs à semiótica anglo-saxã em casos onde a natureza da enunciação faz parte do sentido. Nós conhecemos aí os exemplos clássicos da promessa, da advertência, da ameaça. Na promessa, há o engajamento em relação àquilo que se promete. Faz parte do sentido da promessa alguém se engajar nela. Isto acaba nos demonstrando como, no final das contas, toda asserção comporta um elemento de ato posicional. Se digo "Este livro está sobre a mesa", há sempre um "e eu acredito nisto". Toda fala engaja um sujeito pois toda enunciação coloca em causa tanto o valor de verdade da proposição quanto a credibilidade do locutor. Chegar a este universo através do questionamento sobre a psicanálise não era difícil já que o ato terapêutico se produz quando conseguimos engajar o sujeito na sua fala.Eu acrescentaria na minha relação com a pragmática um elemento circunstancial: eu vivi 25 anos nos EUA. Ou seja, eu nadei no banho da filosofia analítica.Quando o senhor fala da pragmática anglo-saxã como um aparato teórico capaz de nos esclarecer a questão do ‘como dizer’, tem-se a impressão de que há aí a procura de uma ética através da análise do problema dos atos de linguagem.Eu diria exatamente o inverso: todo questionamento ético pressupõe uma análise linguística prévia, tal como acabo de mostrar no caso da promessa, onde se vê a importância do engajamento do sujeito naquilo que ele diz. O problema da credibilidade do locutor é um bom exemplo de articulação de uma questão ética a partir de uma consideração epistêmica. Mas é verdade que raramente estamos no domínio do ‘puramente epistêmico’, à exceção talvez da matemática.Quando o senhor pensa o problema da intersubjetividade, não há o abandono da idéia de ‘sujeito’ e da análise de suas funções intencionais. Mas como podemos conservar esta espécie de ontologia da primeira pessoa sem entrar na metafísica do sujeito?Depende do que você chama de ‘metafísica do sujeito’. Se você está pensando em Heidegger e sua crítica à pretensão do sujeito em ser o fundamento de todas as coisas, é bom lembrar que este é um extremismo filosófico que ninguém nunca sustentou. A colocação de Heidegger é mais da ordem de uma construção-limite. Não quero entrar em polêmica com Heidegger mas o que é interessante nele é seu próprio pensamento, e não a maneira como ele coloca todo mundo sob a etiqueta comum de ‘metafísica’, que teria reinado de Platão até o momento em que Heidegger em pessoa aparece. Afinal, no espaço de tempo de Parmênides à Heidegger aconteceram algumas coisas.Analisemos o caso daquele que é visto como o fundador da filosofia moderna do sujeito: Descartes. Desde o início das Meditações há Eu e Deus, este Outro absoluto. No fundo, o que Descartes sempre disse é: ‘eu não estou sozinho’. Isto é algo que aparece mesmo no estilo do seu texto. Lembre-se que nas Meditações, as objeções e as respostas fazem parte do texto cartesiano.No meu ponto de vista, nós teríamos realmente uma metafísica do sujeito com Fichte. Nem sequer o sujeito kantiano é um sujeito absoluto, já que há um Eu numenal engajado na prática. Mas mesmo no caso de Fichte nós sabemos que ele só pode ir até o fim em uma filosofia do sujeito à condição de duplicá-lo. Se há um pensador da intersubjetividade, este pensador acaba sendo o próprio Fichte; basta ver seus escritos sobre o direito natural. No fundo, isto mostra como ninguém pensou o sujeito fora de uma situação dialógica.Quer dizer que não há, ao pé da letra, ‘filosofia do sujeito’?Não neste sentido. Podemos economizar muitos problemas se formos mais atentos à filosofia do direito. Pois o problema da alteridade e da pluralidade sempre esteve presente no direito e na filosofia política, graças às noções de dano feito ao outro e de justiça devida. Aqui, seria necessário seguir uma outra via: a via de Hobbes, de Locke, de Leibniz, em suma, toda a tradição do direito natural. Quer dizer, no meu ponto de vista, não é exatamente Descartes que preserva a intersubjetividade, já que ela estava no coração dos filósofos do direito natural. E aqui eu penso principalmente em Pufendorf. O problema é que a história da filosofia negligencia muito esta corrente não-cartesiana da reflexão sobre o sujeito e a intersubjetividade.Na sua última obra, o senhor afirma seguir uma indicação husserliana e analisar o problema da memória a partir do objeto da memória, e não a partir do sujeito. O que ganhamos quando colocamos o problema da memória a partir do objeto?Esta é uma reviravolta que me deixa muito orgulhoso pois ela me possibilita ir ainda mais longe na luta contra a pretensa auto-constituição do sujeito. Tudo começou com minha descoberta do tomo XXIII das Husserlianas, que, ao invés de tratar da memória de si, trata da lembrança enquanto uma imagem diante do espírito. Imagem que deveria ser confrontada com toda a gama dos objetos mentais irreais; ou seja, tudo aquilo que aparece em alemão sob os termos de Vorstellung, Darstellung, Bild, Phantasie Isto me permitiu retomar o problema dos gregos, que era um problema da imagem, e não um problema do si mesmo. É neste ponto que começa meu livro. A imagem nos coloca diante de uma presença da ausência e, para os gregos, isto estava ligado ao problema do erro. Eis um problema que atormentava Platão, já que isto o fazia assassinar o pai Parmênides, filósofo do ser pleno, ao afirmar que há também o não-ser, e a prova da existência do não-ser é o erro. E a prova de que existe o erro encontra-se no fato de que nós nos enganamos em nossas lembranças. Isto significa que posso me equivocar a respeito de mim mesmo através das minhas lembranças. Mas, ao mesmo tempo, eu não tenho nada melhor do que a memória para me assegurar de que ‘alguma coisa’ ocorreu no passado. Veja como não estamos diante do problema do conhecimento de si mas, antes, diante do problema da representação de um acontecimento anterior. O senhor fala aqui desta relação entre erro e memória mas há um momento em que seu livro insiste na distinção entre memória e imaginação e dá para pensarmos que essa distinção serve exatamente para ligar o erro à imaginação, permitindo que a memória tenha transparência.Eu analisaria o problema de uma maneira inversa. Com a imaginação e a ficção não há um problema de erro. Se eu invento um personagem de romance, ele não é nem verdadeiro nem falso. Ele simplesmente é irreal. Já a lembrança tem a pretensão de dar presença a algo que está ausente mas que, anteriormente, esteve presente. Neste sentido, é ela que pode se enganar. Mas é verdade que a teoria clássica sempre tentou colocar o erro do lado da imaginação. Estávamos aí diante de uma concepção de imaginação do tipo alucinatório que você pode encontrar em Montaigne, em Pascal e em Spinoza. Uma espécie de suspeita geral contra a imaginação. Nós, depois do romance do século XIX, estamos mais interessados no lado ‘ficção’ da imaginação. Nosso problema, assim como o grande problema da história, será: ‘como podemos ter certeza de que conseguimos traçar uma linha entre a verdade do passado e a ficção?’. Até porque, a imaginação e a memória têm a mesma presença mental. Tanto uma quanto outra tem a forma de uma imagem, ou o ícone dos gregos. Platão já tinha tentado fazer a diferença entre um ícone falacioso e um ícone que seria o portador da verdade da coisa.E, no seu ponto de vista, qual seria o procedimento para distinguir a imagem ligada à memória e a imagem ligada à imaginação?Não temos nenhuma maneira radical de sabermos se estamos diante de uma lembrança verdadeira ou de uma construção pois só podemos recorrer à certeza interior, e ninguém pode nos contestar isto. A não ser que, quando se trata de um fato exterior, uma outra testemunha se oponha a nós. Mas esta outra testemunha procederá da mesma maneira, ou seja, a partir das suas próprias certezas.Quer dizer, voltamos ao princípio de subjetividade.Não temos como abandoná-lo de maneira radical. Se eu digo: "Eu me lembro de algo", você não pode me objetar nada; a não ser que haja uma contradição fatual com outra testemunha.Finalmente, eu diria que, em um certo momento, é necessário confiar na palavra do outro e, principalmente, na sua própria palavra. Trata-se de uma questão de fiabilidade. Não podemos duvidar de tudo durante todo o tempo. O primeiro gesto é sempre o de confiar, mesmo que ele seja, no fundo, uma espera para o aparecimento de boas razões para duvidar. E aqui não podemos esquecer que o primeiro gesto é confiar em si mesmo. Senão como poderíamos sair da desconfiança permanente em relação ao outro?Há aqui o que os filósofos analíticos chamam de princípio de caridade : ‘eu devo acreditar na honestidade da sua palavra’.No seu novo livro, o senhor fala também de uma ‘política da boa memória’ na qual o esquecimento não seria inimigo da memória mas elemento necessário para a constituição de uma ‘memória reconciliada’. Quais seriam os dispositivos principais desta política?Este é um dos grandes combates do meu livro. Neste ponto, trata-se de uma memória que atravessou os desafios da história. Não estamos falando aqui desta primeira memória, que poderíamos chamar de memória proustiana, através da qual eu conto a minha vida para mim mesmo ou para meus próximos. Estamos falando de uma memória que se transformou em memória coletiva e que passou pelo crivo destes processos que compõem a história e que são: a escritura, os arquivos, a prova documental, a explicação, a compreensão e a expressão. A partir daí podemos colocar o problema da ‘memória justa’, ou seja: ‘como as instituições poderão administrar as práticas públicas da memória ?’. Entramos assim no problema de disposições institucionais como a prescrição e a anistia.Eu fiz uma pequena história da anistia que é muito interessante. Nós podemos encontrar a anistia em vários momentos do nosso passado ocidental; a começar pela lei grega de 403 AC que enunciava: "Você não evocará as palavras do passado" , quer dizer, nós faremos como se nada tivesse ocorrido. Isto aparece, por exemplo, na história da França com Henri IV e o Edito de Nantes. O Edito afirmava aos protestantes e católicos: "cessem de se massacrarem e comecem parando de falar mal uns dos outros"; ou seja, tratem suas dores como algo que não aconteceu. Infelizmente, isto não funciona. As sociedades não esquecem. O que não impede que tais procedimentos tenham um valor terapêutico. Penso, por exemplo, na França: uma país que fez uso considerável da anistia devido à pretensão da consciência política francesa em sempre ter razão. Eis aí a fonte da famosa arrogância francesa. Ela traduz-se na crença de que devemos tratar os crimes cometidos como se não tivessem ocorridos, a fim de manter intacto o caráter indivisível da República. Este preconceito relativo ao caráter indivisível da soberania faz com que só possamos defendê-la através daquilo que os psicanalistas chamam de ‘denegação’. Algo válido do ponto de vista terapêutico, mas suspeito do ponto de vista da verdade e da justiça. Além da questão da memória denegada, há um capítulo em seu livro onde a memória aparece como obstáculo à história. O senhor analisaria o problema da Shoah a partir desta estrutura?No meu livro não há análises de nenhum acontecimento específico, até porque o que procurava era entender como podemos saber se um acontecimento ocorreu, como tentamos explicá-lo e como tentamos narrá-lo. Logo, a Shoah nunca é citada no livro, embora ela esteja constantemente presente exatamente como o obstáculo, já que é o obstáculo ao testemunho, o obstáculo à explicação, ao julgamento e ao perdão. Neste sentido, ela é o que pode fazer vacilar o empreendimento historiográfico,Peguemos o problema do testemunho. Um testemunho só é compreendido se ele reencontra a capacidade ordinária de compreensão. Nós sempre o recebemos em um quadro cultural já dado, o que dificulta a escuta de acontecimentos monstruosos, extraordinários. Tais acontecimentos sempre colocam à prova a nossa capacidade de escuta e compreensão.No caso da Shoah há ainda o obstáculo à explicação e, sobretudo, o obstáculo à representação. Temos dificuldade em encontrar recursos narrativos que nos respondam à questão de como dizer. Mas este problema já aparece no caso da lembrança. A diferença é que acontecimentos monstruosos multiplicam tal dificuldade.Retornando à questão da memória que impede o trabalho da história; foi por isto que eu guardei o conceito freudiano de trabalho de memória, distinguindo-o ao dever de memória. Freud havia encontrado na cura psicanalítica o problema das resistências e da compulsão de repetição. De fato, ele procurava entender como a memória poderia se liberar da compulsão de repetição.A memória pública sempre encontra tal problema com as comemorações. Como fazer para que as comemorações sejam autênticas, ao invés de se transformarem em meras concessões à repetição obsessiva? Este é um problema muito bem colocado por Pierre Nora em Os lugares da memória: livro que mostra como as comemorações podem impedir o contato com os acontecimento da história.Você sabe que me acusaram de jogar o trabalho de memória contra o dever de memória, o que é completamente falso. Para mim, o dever de memória é indubitável enquanto obrigação em relação às vítimas. Mas a questão é de saber no que consiste tal dever. Certamente ele não consiste em repetirmos, todas as manhãs: ‘Eu fui um assassino, eu fui um cúmplice’. Na verdade, o dever de memória significa que, em todas as minhas reflexões sobre minhas relações com os outros, eu sempre levarei em conta o que aconteceu. Eu nunca perderei de vista que, na Europa, no meio do século XX, houve o crime monstruoso da Shoah, isto independentemente da sua semelhança ou não com o Gulag, com os massacres na Ruanda. Mas eu não vou me deplorar durante toda a vida.Aqui nós tocamos na questão de saber se há um dever de esquecimento. Minha resposta é negativa. Primeiro, por razões epistêmicas: o esquecimento não é um ato, ele é um estado e não podemos transformar um estado em dever. Segundo, porque o esquecimento já está incorporado à memória através da impossibilidade em contar tudo. Você sabe que a hipernesia, estado no qual nada seria esquecido, é uma doença. E aqui eu citaria este texto de Borges: Fuentes, el memorioso. Aquele que nada esquece é monstruoso. Logo, temos que fazer uma triagem. A questão é de saber se fazemos algum mal aos outros ao operarmos a triagem.É neste horizonte que coloco a questão do perdão. Se o perdão puder ser uma ‘memória reconciliada’, então haverá algo como a reconciliação com o esquecimento.Hegel dizia que as feridas do Espírito se curam sem deixar cicatrizes e o senhor fala do perdão enquanto uma memória reconciliada. Mas como podemos saber que o perdão não é mais uma figura desta ‘pretensão totalizante da memória’ que o senhor mesmo denuncia em seu livro?É pensando nisto que introduzi a noção de ‘irreparável’. Na verdade, eu empreguei três palavras: há o ‘irreconciliável’ das diferenças insolúveis, o ‘inextricável’ no passado e, sobretudo, o ‘irreparável’ no mal feito aos outros. Neste sentido, a história deixa feridas que não se fecham. Continuando no registro hegeliano, diríamos que eu incorporo o irreparável ao movimento do Espírito.Quer dizer, há coisas que não se pode perdoar.Exato. Mas este ‘se’ da frase não se refere à mim, refere-se às vítimas, já que só as vítimas podem perdoar. O problema do perdão não consiste em exercer o perdão mas em poder pedi-lo. Ora, quem pede perdão ao outro já está preparado para receber uma resposta negativa. Mas é assim, o perdão não é exigível.

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