terça-feira, 28 de abril de 2009

os Mil platôs por Gilles Deleuze

Os anos passam, os livros envelhecem, ou, ao contrário, adquirem uma segundajuventude. Ora eles se espessam e incham, ora eles modificam seus traços, acusam suas arestas,fazem subir à superfície novos planos. Não cabe aos autores determinar um determinado destino objetivo. Mas cabe a eles refletir sobre o lugar que um determinado livro adquiriu com o tempo no conjunto de seu projeto (destino subjetivo), ao passo que ele ocupava todo o seu projeto no momento em que foi escrito.Mil platôs (1980) é a seqüência de O Anti-Édipo (1972). Mas eles têm tido, objetivamente,destinos muito diferentes. Sem dúvida, por razões de contexto: a época agitada de um, que faz ainda parte de 68, e a calma já monótona, a indiferença em que o outro surgiu. Mil platôs foi o mais mal recebido de nossos livros. Entretanto, se nós o preferimos, não é como uma mãe prefere seu filho pouco gracioso. O Anti-Édipo teve muito sucesso, mas esse sucesso se replicava em um fracasso mais profundo. Ele pretendia denunciar os estragos de Édipo, do “papai-mamãe”, napsicanálise, na psiquiatria e mesmo na anti-psiquiatria, na crítica literária, e na imagem geral que se faz do pensamento. Nós sonhávamos em acabar com Édipo. Mas era uma tarefa demasiadamente grande para nós. A reação contra 68 deveria mostrar a que ponto o Édipo familial se portava bem e continuava a impor seu regime de lamúria pueril na psicanálise, na literatura e em todas as partes do pensamento. Ainda que o Anti-Édipo permanecesse nosso projétil. Ao passo que Mil platôs, malgrado seu fracasso aparente, nos fazia dar um passo adiante,ao menos para nós, e abordar terras desconhecidas, virgens de Édipo, que o Anti-Édipo tinha visto apenas de longe sem penetrá-las.Os três temas de O Anti-Édipo eram os seguintes:1) O inconsciente funciona como uma fábrica e não como um teatro (questão de produção e não de representação);2) O delírio, ou o romance, é histórico-mundial e não familial (deliramos as raças, as tribos,os continentes, as culturas, as posições sociais...);3) Há, precisamente, uma história universal, mas é a da contingência (como os fluxos, quesão o objeto da História, passam por códigos primitivos, por sobrecodificações despóticas e pordescodificações capitalistas que tornam possível uma conjunção de fluxos independentes).O Anti-Édipo tinha uma ambição kantiana, era preciso tentar uma espécie de Crítica darazão pura no nível do inconsciente. Daí a determinação de sínteses próprias ao inconsciente; odesenrolamento da história como efetuação dessas sínteses; a denúncia do Édipo como “ilusãoinevitável”, falsificando toda produção histórica.Mil platôs reivindica, ao contrário, uma ambição pós-kantiana (ainda que decisivamente anti-hegeliana). O projeto é “construtivista”. É uma teoria das multiplicidades por si mesmas, ali onde o múltiplo passa ao estado de substantivo, enquanto que o Anti-Édipo o considerava ainda nas sínteses e sob as condições do inconsciente. Em Mil platôs, o comentário sobre o Homem dos Lobos (“um só ou vários lobos”) constitui nosso adeus à psicanálise, e tenta mostrar como as multiplicidades extravasam a distinção entre a consciência e o inconsciente, entre a natureza e a história, entre o corpo e a alma. As multiplicidades são a realidade mesma, e não supõem nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade, assim como não remetem a nenhum sujeito. As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que produzem e aparecem nas multiplicidades. As principais características das multiplicidades dizem respeito a seus elementos, que são singularidades: suas relações, que são devires, seus acontecimentos, que são hecceidades (isto é, individuações sem sujeito); seus espaços-tempos,que são espaços e tempos lisos; seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo da árvore); seu plano de composição que constitui platôs (zonas de intensidade contínua);os vetores que os atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização.A história universal da contingência ganha aí uma maior variedade. Em cada caso, a questão é: onde e como se faz esse reencontro?
Em vez de seguir, como em O Anti-Édipo, a sucessão tradicional Selvagens-Bárbaros-Civilizados, nós nos encontramos agora diante de toda a espécies de formações coexistentes: os grupos primitivos, que operam por séries, e por avaliação do “último” termo, em um estranho marginalismo; as comunidades despóticas, que constituem, ao contrário, conjuntos submetidos a processos de centralização (aparelhos de Estado); as máquinas de guerra nômades, que não se apoderarão dos Estados sem que esses não se apropriem da máquina de guerra que eles não tinham inicialmente; os processos de subjetivação que se exercem nos aparelhos estatais e guerreiros; a efetuação da convergência entre esses processos,no capitalismo e através dos Estados correspondentes; as modalidades de uma ação revolucionária; os fatores comparados, em cada caso, do território, da terra e da desterritorialização.Os três fatores, pode-se vê-los aqui jogar livremente, isto é, esteticamente, no ritornelo. As pequenas canções territoriais, ou canto dos pássaros; o grande canto da terra, quando a terra urrou; a possante harmonia das esferas ou a voz do cosmo? É exatamente isso que este livro queria: agenciar ritornelos, lieder, correspondendo a cada platô. Porque a filosofia, também ela,não é outra coisa: da pequena canção ao mais possante dos cantos – uma espécie de sprechgesang [canção falada] cósmico. O pássaro de Minerva (para falar como Hegel) tem seus gritos e seus cantos; os princípios em filosofia são gritos, em tornos dos quais os conceitos desenvolvem verdadeiros cantos.

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