quarta-feira, 29 de abril de 2009

josê gil

Em Portugal ‘não há drama, tudo é intriga e trama’, escreveu alguém num grafiti em Lisboa. José Gil – 65 anos, filósofo – usou a frase para abrir um dos capítulos do seu último livro (edição Relógio D’Água). Para falar do País que temos, socorreu-se de muitos outros elementos retirados da rua: desde conversas de café a anedotas populares. Afinal, o modo como um português se comporta num semáforo é tão revelador da sua portugalidade como a respectiva maneira de praticar o luto. E o que somos afinal? Um país onde – defende o filósofo – nada acontece. Porque, como diz o anúncio, todos falam, falam, mas ninguém faz nada. Livro-mensagem, com o qual o autor quis despertar a consciência dos portugueses, tem sido um inesperado sucesso. Publicado em Novembro do ano passado, antes da queda de Santana Lopes, foi empurrado para os ‘tops’ por uma série (in)feliz de acasos. Primeiro foi o desnorte governamental, que tornou ainda mais evidente a deriva do país (sobre a qual versa o livro); depois saiu um artigo na revista francesa ‘Le Nouvel Observateur’ onde José Gil era considerado um dos 25 pensadores mais importantes do mundo. Começava a bola de neve. Desconhecido de um público mais vasto apesar da longa carreira – o autor tem 15 obras publicadas, fez o mestrado e o doutoramento em Filosofia em França onde viveu muito anos – o discreto professor catedrático da Universidade Nova viu-se transformado numa estrela mediática. Dá entrevistas em série, aparece na TV, é já citado em discussões de bola. Tudo graças a um ‘livrinho’ (a expressão é de José Gil) que vai na quarta edição e continua a esmagar a concorrência de ‘O Código Da Vinci’.Diz que Portugal vive no nevoeiro, porque nada acontece – ou seja, nada se inscreve. O que é isso da ‘não inscrição’? Um acontecimento increve-se quando transforma o sentido da vida, quando nos marca. Um exemplo. Há uma mulher que o ama e faz tudo para cativá-lo; mas nada do que ela faça o afecta, ou seja, não há inscrição possível. Pode aparecer no entanto uma outra mulher que vai provocar um reboliço na sua vida, que o vai marcar; ou seja, transforma-o, e ao fazê-lo increve-se. Vou falar-lhe de uma coisa que me impressionou muito quando cheguei a Portugal [vindo de França] em 1982. Assisti na televisão ao relato de uma violação feito por uma mulher que tinha sido vítimaa. O jornalista perguntava-lhe: “Se encontrasse agora o seu violador, o que lhe faria?” E ela respondia, com uma voz extremamente ténue e doce: “Eu dir-lhe-ia – ‘mas porque é que fez isso?’”Quando a ouvi caí das nuvens. Porque se fosse o mesmo programa de televisão noutro país, teria ouvido reacções de vingança, de indignação paroxística. Havia ali qualquer coisa que eu não compreendia. Porquê? Porque o acto [a violação] não se tinha inscrito. Defende que Portugal é um país onde nada se inscreve; ou, por outras palavras, onde nada acontece.Veja a guerra colonial. Só há poucos anos é que emergiu à tona enquanto acontecimento, que foi muito trágico. E então descobriu-se que há associações de pessoas psicologicamente traumatizadas, que viveram anos numa espécie de clandestinidade em relação à informação. Porquê?Esse fenómeno, a ‘não inscrição’, tanto se passa a nível social como a nível privado. Sem dúvida. Uma separação num casal pode ser uma coisa que leva a rasgões internos, a modificações da afectividade, a depressões, etc.. No entanto tentamos dar a aparência de que correu tudo bem. Dizemos: “Nós estamos bem, não houve grandes conflitos...”. Mas isso é verdade apenas no plano da linguagem, serve para mostrar aos outros. Há porém um outro texto, o texto das coisas não ditas, onde se acumulam
rancores, ódios, indignações. E como se acumulam, como não podem ser exprimidos, transformam-se em sintomas. Nós queremos sempre dar a aparência de que somos boas pessoas, por isso é que os estrangeiros gostam tanto de nós. E até somos boas pessoas, mas existe uma outra realidade. E seríamos muito melhores se essa outra realidade se exprimisse também.Se uma pessoa guarda em si um rancor qualquer, nasce-lhe uma borbulha. Atribui essa mentalidade aos anos de salazarismo.Sei que Salazar reactivou e generalizou qualquer coisa que nos impediu de crescer. Conheci ainda uma geração dos oposicionistas a Salazar, velhos generais da República que tinham uma coluna vertebral mais rígida do que o aço. Mas essa gente desapareceu. Não estou a dizer que Portugal seja unicamente feito por uma colectividade que não cresceu. Sei que o salazarismo reactivou muito do pior que há em nós - embora tenha conservado, como num frigorífico, muitas das coisas boas que nós temos e que têm vindo a desaparecer agora das sociedades altamente industrializadas. Mas no ponto de vista espiritual, da capacidade de ter força no pensamento, da capacidade de autonomia, da liberdade, nesses aspectos que são absolutamente vitais, Salazar teve uma profunda acção mutiladora.O que acabou por nos tornar medrosos. De que é que temos medo afinal? Acho que é um medo entranhado de tal forma que muitas vezes nem sabemos do que é que temos medo. O que é fácil de comprender. Se eu me inibo, por exemplo, de felicitar um amigo que escreveu um belo livro, e me limito unicamente a dizer, ‘Olha gostei muito’, há aí uma limitação na minha expressão. Isso acontece constantemente em Portugal, temos medo de nos exprimirmos. Por trás disso há razões muito profundas, históricas e sociais, que foram reactivadas por 48 anos de salazarismo; são razões que não se conhecem, já não estão à flor de pele. E que levaram a que fossem interiorizados em nós esses medos, que são inibições, inexpressões. O seu livro contraria essa tendência lusa, justamente porque é uma forma de expressão. O que o levou a escrevê-lo? Um sentido de missão?O sentido de missão é um termo demasiado nobre para aquilo (a expressão) que todos nós devemos ter. Não vivemos sozinhos. Senti um sufoco perante toda uma série de esquecimentos, senti que era impossível dizer o que queria dizer, por isso escrevi-o. E nesse sentido, nós todos temos uma missão colectiva: exprimirmo-nos.E exprimiu-se no momento certo, como prova o sucesso do livro. Não osurpreendeu?Foi uma conjunção absolutamente coincidente de factores. Escrevi este livro há já bastante tempo, mas por causa de uma conversa que tive peguei nele e dei-o tal e qual ao editor. Ele leu e disse: “Vamos publicar isto já, daqui a dez dias”. Eu escrevi mais umas coisas, como as entradas a respeito de Santana Lopes, e depois publiquei-o.Ainda antes da queda do Governo...E entretanto aconteceu tudo: a queda, o facto de Santana Lopes enquanto líder se ter esvaziado, etc. Mas a angústia já pairava antes: a saída de Durão Barroso, as perspectivas económicas cada vez piores... Tudo isso provocou nos portugueses uma espécie de desnorte, uma incapacidade de se situarem. Onde estamos? Para onde vamos?Bom, acontece que, imediatamente depois, a coisa agudizou-se com a queda do Governo. A não compreensão do estado presente acentuou-se. Ou seja, o desnorte foi tal que se transmitiu do líder à colectividade; e entretanto aparece um livrinho que apresenta algumas coordenadas Já depois de publicado o livro, o momento político veio dar-lhe razão; confirmou a ‘não inscrição’, o facto de em Portugal ser tudo fogo de vista. Uma parte substancial da campanha foi o discurso sobre a própria campanha. O que se discutiu foram os acontecimentos menos importantes. E a técnica de Santana Lopes, o ‘espelhamento por projecção’. Quer dizer, é o criar de uma situação conjugal, como a discussão entre um homem e a mulher. Ele queixa-se, por exemplo, do café amargo e ela responde: ‘Mas tu é que me disseste’ e ele responde à resposta dela e tudo anda em círculo. A técnica de Santana Lopes é a projecção. Dizem-lhe qualquer coisa e ele reprojecta sobre o outro. E o pior é que o opositor, José Sócrates, às vezes pegava na deixa, entrava nesse espelhamento. Um dizia que estava ofendidíssimo por isto e aquilo, o outro respondia à letra. O que se passou na campanha foi uma discussão conjugal – que é uma técnica de ‘não inscrição’, nada realmente aconteceu. Há uma perversidade na maneira de fazer política de Santana Lopes. Ele é por excelência um indivíduo que cria acontecimentos; ora o acontecimento é por definição um foco emissor de sentido; acontece que este indivíduo, apesar de produzir acontecimentos, não produz sentido nenhum. Esvazia o sentido nessas guerras conjugais. Transforma uma coisa tão séria como o futuro imediato deste país – ao fim ao cabo aquilo que se joga no combate político, e que deveria exigir de nós uma atitude responsável – numa discussão ‘fulanizada’. Quando na verdade uma campanha deveria ser centrada nas políticas de fundo Ao incentivar esse espelhamento [a guerra conjugal], Santana Lopes faz com que nada aconteça, tudo se torna imaginário. A realidade desta campanha tem sido uma discussão do tipo: “Ah, o meu opositor agora fez isto e aquilo”, quando na verdade seria necessário muito mais: uma postura minimamente cívica por parte de todas as pessoas. A campanha foi também o jogo de um malabarista. O malabarista, ao equilibrar os objectos, faz com que eles não caiam. E é isso que o Santana tem feito.Por outras palavras, o debate em torno do nosso futuro deu lugar a um tu-cá-tu-lá Absolutamente. Não digo porém que toda a campanha tenha sido assim; digo apenas que isso invadiu a campanha de tal maneira que praticamente foi só o que vimos. E por isso não aderimos, não nos sentimos responsabilizados. E por isso vai haver votos negativos em todos os sentidos. É a tal ‘não inscrição’. Existe aqui uma máquina, um dispositivo que cria perversamente, a todo instante, pseudo acontecimentos. Santana poderia ter sido como Salazar, que não criava acontecimento nenhum, que fomentava silêncio. Em vez disso, fez o contrário. Ou seja, nada acontece, mas esses não acontecimentos acabam por ter eco nos media.Exactamente. Repare, nós construímos a realidade através de inscrições. Inscrever uma cidade é fazer casas, ruas, desenvolver actividades num determinado território. Isso tem a ver com o real, não com o imaginário. Acontece que os políticos fazem o contrário, em vez de inscreverem, fazem tudo para desinscrever. Sempre que houve um comício, vimos a acompanhar Santana Lopes a palavra ‘competência’. Ou seja pretendeu-se acabar com aquela aura negativa de Santana Lopes – a incompetência – usando as palavras contrárias: competência, estabilidade, coragem, etc.. No seu livro refere que as manchas na carreira dos políticos e governantes pouca importância têm; no espaço de meses eles são perdoados?Em tão pouco tempo é possível que não se esqueça; mas a propensão para o esquecimento é muito forte. As pessoas estão prontas a esquecer os erros de Santana Lopes, já muitas se esqueceram, só vêem nele a humanidade da personagem, que sabe falar, que não tem aquela rigidez do Sócrates. Olham para o líder do PSD e pensam: “Ele é um bom homem, é um de nós”. E esquecem-se de todo o resto. A ‘não inscrição’ vive do imediato. Nós não vemos mais longe, não temos projectos a longo prazo, nem para as nossas vidas nem para a existência colectiva, mesmo nas empresas pensa-se a muito curto prazo. E essa maneira de viver o tempo tem a ver com a nossa maneira de ser, um constante saltitar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário