Como o senhor considera o pensamento de Gramsci em relação à tradição teórica política italiana? Por exemplo, por que ele se obrigou a acertar as contas com Maquiavel?A referência a Maquiavel tem uma função dupla. Em primeiro lugar, uma função de significado teórico geral: a definição do partido como “moderno Príncipe” serve para assinalar a exigência de que o partido não se reduza a uma mera representação de interesses econômicos nem a um reflexo mecânico de uma lógica de classe, mas, em vez disso, se constitua como um sujeito político capaz de assumir toda a história nacional. Em segundo lugar, uma função específica, ligada ao déficit ético-político da burguesia numa nação culturalmente precoce mas politicamente tardia, como a Itália: neste sentido, cabia ao partido a tarefa histórica de realizar aquela “reforma intelectual e moral” que as burguesias de outros países (como a Inglaterra e a França) haviam desempenhado desde as origens da modernidade, produzindo um “senso comum” tecido de valores compartilhados, uma espécie de acumulação ética originária que acompanha a acumulação capitalista. Explica-se assim o uso positivo, em Gramsci, do termo “conformismo”: um uso incompreensível se não se levar em conta o contexto ético-político da sua argumentação.Quais são as principais contribuições teóricas de Gramsci no debate da esquerda européia dos anos de 1920 e 1930? O senhor escreveu vários ensaios sobre o debate alemão da esquerda weimeriana e sobre muitos outros marxistas, como Kirchheimer, Neumann, Pollock, etc. Como se pode inserir Gramsci neste grande movimento intelectual inovador do marxismo?Tal como os autores marxistas citados, ou reacionários argutos como Carl Schmitt, Gramsci dirigiu sua atenção para as transformações que envolveram a dimensão do político entre as duas guerras: com a passagem da sociedade de livre concorrência para a sociedade de massas e com o conseqüente aparecimento de novas formas de poder (e de “modernismo reacionário”), baseadas numa organização disciplinar e capilar do consenso.
Em que sentido Gramsci ainda hoje nos interpela?Gramsci nos leva a pensar nas mudanças da estrutura do mundo, seguindo o rastro das reflexões que nos foram legadas nos Cadernos do cárcere. O ponto de partida destas reflexões é que, no curso dos anos 1920-1930, não se assiste à crise do capitalismo, mas ao declínio do Estado-nação como sujeito histórico “hegemônico” na história da Europa moderna. Uma forma histórica já incapaz de fazer com que se desenvolvam novas formas de vida e de organização social. A análise do americanismo — da sua capacidade de originar formas de disciplinamento, ampliar as funções produtivas e as bases da democracia, tornando-se assim potência hegemônica no mercado internacional — mostra a Gramsci os caminhos através dos quais se estavam desenvolvendo um racionalismo e um industrialismo projetado além do Estado-nação (e além da lógica nacional-estatal das velhas elites dirigentes européias).Em vez disso, cabe-nos hoje uma tarefa adicional e diferente: delinear uma perspectiva a partir, exatamente, da crise da hegemonia americanista e fordista, para favorecer a constituição de uma subjetividade política capaz de compreender, governar e transformar em sentido democrático os mecanismos que regulam a economia-mundo.O senhor poderia sublinhar quais são as contribuições mais importantes de Gramsci para uma teoria da política nos nossos dias?Difícil relacionar os múltiplos aspectos ainda vitais da reflexão gramsciana para a teoria política moderna. Limito-me a recordar três deles. A noção de “intelectual orgânico”, também definida numa fórmula simples e intensa: “especialista + político”. A idéia da democracia não só como sistema de regras e procedimentos, mas forma de relações — como a res publica de Maquiavel — capaz de reunir num conjunto dinâmico e vital uma pluralidade de sujeitos que interagem na base de mútuo reconhecimento. A perspectiva de um novo cosmopolitismo, capaz de promover a libertação dos indivíduos através de uma práxis de transformação baseada no acréscimo de saber e de ciência.O senhor pode falar algo sobre as relações entre economia e política em Gramsci?À parte as complexas relações com Piero Sraffa, que envolvem aspectos de teoria econômica que é difícil simplificar numa entrevista, uma das contribuições decisivas é constituída pela categoria de “mercado determinado”. Quanto a esta categoria, nunca vai se sublinhar suficientemente o papel desmistificador que tem em relação à ideologia — aliás, em relação a este verdadeiro fundamentalismo ocidental — que vê o Mercado como uma dimensão pura, “auto-regulada”, independente da política e do contexto ético e cultural que dá ao mercado, em cada caso, sua configuração histórica específica. Muito freqüentemente, as ideologias liberistas e neoliberistas são apenas a máscara da lógica de poder que governa a dinâmica da economia.Nesta linha de pensamento, como o senhor analisa hoje a questão cultural no capitalismo contemporâneo, um tema, como sabemos, muito caro a Gramsci?Um dos aspectos mais interessantes do revival internacional da obra de Gramsci é representado — ao lado do tema das transformações do “político”, no qual eu mesmo trabalhei por muito tempo — pela recepção dos Cadernos por parte dos Cultural Studies e dos Postcolonial Studies. Penso em fundadores de escola, como Stuart Hall ou Edward Said, antes de mais nada. Mas também em seus herdeiros e continuadores, como Ranajit Guha, Homi Bhabha, Arjun Appadurai, Gayatri Chakravorty Spivak, Dipesh Chakrabarty e outros. Nestes intelectuais, tornam-se centrais as noções gramscianas de “hegemonia”, “identidade cultural”, “subalternidade”: numa perspectiva em que a política se entrelaça com a antropologia, a abordagem histórico-sociológica com a análise literária comparada. Ainda é cedo para dizer algo definitivo sobre a fecundidade destas novas abordagens. Mas não é um acaso que, também na Itália, estes temas tenham sido retomados nos últimos anos por jovens e interessantes estudiosos (como, por exemplo, Emanuela Fornari, Miguel Mellino e Sandro Mezzadra).Ressalto que Gramsci tem a dizer ao nosso presente da modernidade-mundo muito mais do que pensávamos. E, sobretudo, revela-se capaz de falar às mais diferentes culturas e gerações, pondo-as face a face na perspectiva do que chamei, nos meus trabalhos recentes, de universalismo da diferença.
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