Para tornar possível uma hegemonia das forças democráticas exigem-se, portanto, novas identidades, e eu defendo uma identidade política comum como cidadãos democratas radicais. Por tal identidade entendo uma identificação colectiva com uma interpretação democrática radical dos princípios do regime democrático-liberal: a liberdade e a igualdade. Tal interpretação pressupõe que estes princípios sejam entendidos de forma que se tomem em consideração as diferentes relações sociais e posições de sujeito em que são relevantes: género, classe, raça, etnia, orientação sexual, etc.Tal abordagem só pode ser adequadamente formulada numa perspectiva que conceba o agente social não como um sujeito unitário mas como a articulação de um conjunto de posições de sujeito, construídas a partir de discursos específicos e sempre precária e temporariamente suturadas na intersecção dessas posições de sujeito. Só com uma concepção não essencialista do sujeito, que integra a visão psicanalítica de que todas as identidades são formas de identificação, podemos colocar a questão da identidade política de maneira frutuosa. Uma perspectiva não essencialista é igualmente necessária no que diz respeito às noções de res publica, societas e comunidade política. Porque é fundamental encará-las, não como referentes empíricos, mas como superfícies discursivas. Se falharmos nisto, o tipo de política aqui proposto tornar-se-á completamente incompreensível.Neste ponto, uma concepção democrática radical de cidadania liga-se aos debates actuais sobre a "pós-modernidade" e à crítica do racionalismo e do universalismo. A concepção de cidadania que proponho rejeita a ideia de uma definição universalista abstracta do público, oposto a um domínio do privado, entendido como o reino da especialidade e da diferença. Considera que, embora a ideia moderna de cidadão tenha sido realmente fundamental para a revolução democrática, constitui hoje um obstáculo à sua extensão. Como as teorizadoras feministas têm defendido, o domínio do público da cidadania moderna foi baseado na recusa da participação das mulheres. Esta exclusão era vista como indispensável para postular a generalidade e a universalidade da esfera pública. A distinção entre público e privado, fundamental para a afirmação da liberdade individual, conduziu também a uma identificação do privado com o doméstico e desempenhou um papel importante na subordinação das mulheres.À ideia de que o exercício da cidadania consiste em adoptar um ponto de vista universal, tomado equivalente à razão e reservado aos homens, oponho a ideia de que esse exercício consiste numa identificação com os princípios ético-políticos da democracia moderna e de que pode haver tantas formas de cidadania quantas as interpretações desses princípios.Nesta concepção, a distinção entre público e privado não é afastada, mas apenas reformulada. Mais uma vez, Oakeshott pode ajudar-nos neste ponto a encontrar uma alternativa às limitações do liberalismo. Segundo ele, a societas é uma condição civil em que todos os empreendimentos são "privados", embora nunca isentos das condições "públicas" especificadas na res publica. Numa societas "todas as situações são um encontro entre o "privado" e o "público", entre uma acção ou um discurso, para obter uma satisfação substantiva imaginada ou desejada e as condições de civilidade a subscrever na sua execução e nenhuma situação implica a exclusão de qualquer outra".Os desejos, as escolhas, as decisões, são privados, porque são da responsabilidade de cada indivíduo, mas os desempenhos são públicos, porque se exige que estejam sujeitos à condições especificadas na res publica. Como as regras da res publica não impõem, proíbem ou garantem acções ou discursos substantivos e não dizem aos agentes o que devem fazer, este modo de associação respeita a liberdade individual. Mas a pertença do indivíduo à comunidade política e a sua identificação com os respectivos princípios ético-políticos manifestam-se pela sua aceitação do interesse comum expresso na res publica. Fornece a "gramática" da conduta do cidadão.No caso de um cidadão democrata radical, tal abordagem permite-nos visualizar o modo como uma preocupação de igualdade e liberdade deve informar as suas acções em todas as áreas da vida social. Nenhuma esfera é imune a estas preocupações e as relações de domínio podem ser sempre questionadas. No entanto, não estamos a lidar com um tipo de comunidade com um objectivo específico que afirma um único objectivo para todos os seus membros e a liberdade do indivíduo é preservada.Mantém-se a distinção entre o privado (liberdade individual) e o público (res publica), tal como a distinção entre o indivíduo e o cidadão, mas não correspondem a esferas discretas separadas. Não podemos dizer: aqui terminam os meus deveres como cidadão e começa a minha liberdade como indivíduo. Estas duas identidades existem numa tensão permanente, que nunca pode ser conciliada. Mas é precisamente a tensão entre a liberdade e a igualdade que caracteriza a democracia moderna. É a própria vida de tal regime e qualquer tentativa para impor uma harmonia perfeita, para realizar uma "verdadeira" democracia, só pode conduzir à sua destruição. É por isso que um projecto de democracia plural e radical reconhece a impossibilidade de uma completa realização da democracia e a conquista final da comunidade política. O seu objectivo é utilizar os recursos simbólicos da tradição democrático-liberal para lutar pelo aprofundamento da revolução democrática, sabendo que se trata de um processo interminável. A minha tese é que o ideal de cidadania poderá contribuir significativamente para tal extensão dos princípios da liberdade e da igualdade. Conjugando o
ideal dos direitos e do pluralismo com ideias de diligência pública e de preocupação ético-política, uma nova e moderna concepção democrática de cidadania poderá restituir a dignidade à política e facultar um meio para a construção de uma hegemonia democrática radical.
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